quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

José e Cleonice


            O noivado foi curto, além do que, foi amor à primeira vista. Conheciam-se pouco, ignoravam hábitos, manias, cacoetes, um do outro.
            Durante a semana José saía para o trabalho e Cleonice revelava-se excelente dona de casa, diligente, caprichosa, ótima na cozinha, Mulher de cama e mesa, José gostava de se gabar diante dos amigos.
            As desavenças surgiram nos fins de semana, quando José gostava de sair, caminhar no lindo parque da cidade, deliciar-se com o sol e a sombra das grandes árvores, pegar um cineminha à tarde, esticar a noite num boteco perto de casa, Nada se compara a comida de boteco, encontrar os amigos, jogar conversa fora.
            Aos sábados, logo após o café da manhã, Cleonice era outra mulher, incompreensível metamorfose. Tomava um longo banho, lavava a cabeça com xampu de boa qualidade, depois vinha o creme para os cabelos e para o corpo, Cleo, olha a luz elétrica!, gritava José, incomodado com aquele desperdício de água e energia. Terminado o banho, vinha o secador, mais quarenta e cinco minutos secando e penteando os cabelos. Então Cleonice enrolava-se numa toalha branca, estendia uma outra, também branca, sobre a cama do casal, o radinho de cabeceira tocando música sertaneja, e tinha início estranhíssimo ritual, o de pintar as unhas do pé.
            Secava dedo por dedo, e os vãos entrededos, com uma toalha de linho egípcio, utilizada apenas com este fim. Retirava tufos de algodão de um grande rolo, todos do mesmo tamanho, e separava com eles cada dedo dos pés. Com tesourinha curva afiada da marca Mundial – só podia ser desta marca, a melhor do mundo – aparava as unhas, retirava uma ou outra sujeirinha inadvertida, e em seguida as lixava com lixa fina. Com um pequeno alicate, também da marca Mundial, removia cutículas e fragmentos de pele excedentes.
            Chegava então o momento supremo, o da pintura das unhas. Cleonice espalhava sobre a cama enorme quantidade de vidros de esmalte, de todas as cores possíveis, dispostos num degradê perfeito, facilitando assim a escolha da melhor tonalidade que combinasse com a luz daquela manhã. Escolhia uma cor, pintava a unha do grande dedo direito, levantava o pé contra a luz da janela, olhava olhava olhava, Não combina. Umedecia então o algodão no pequeno frasco de acetona e retirava o esmalte. Tornava a olhar para a palheta de esmaltes como quem olha para um arco-íris, distraída, o olhar vago, perdida no mundo. Era outra Cleonice.
            José costumava entrar no quarto nesses momentos e gritar, Acorda mulher, para com isso, vamos dar uma volta, saia deste quarto cheirando a esmalte, ao que a mulher respondia, Só depois que fizer minhas unhas.
            Chegada a hora do almoço, como não houvesse comida na mesa, José rumava para o Bode Preto, o melhor boteco do bairro, e esquecia Cleonice por algumas horas, entretido com tira-gostos, cerveja geladíssima, feijoada dos sábados, pinga artesanal de Minas Gerais. Voltava para casa lá pelas cinco da tarde e encontrava Cleonice enrolada na mesma toalha branca, sobre a cama do casal, ainda escolhendo a melhor tonalidade de esmalte que combinasse, agora, com a luz daquela tarde.
            Na hora do jantar a função terminava, as unhas impecáveis, consumada a verdadeira obra de arte. Cleonice requentava alguma coisa da geladeira, acompanhada de salada de alface e tomate, via um filme na televisão e ia dormir, José amuado com mais um sábado perdido.
            No domingo, após o café da manhã, o banho demorado, a toalha estendida sobre a cama, a palheta de esmaltes, a luz suave a penetrar pela janela, o ritual de sempre. A cor escolhida para o sábado não podia mesmo servir para o domingo, para desespero de José.
            Na segunda-feira Cleonice era outra: diligente, caprichosa, ótima na cozinha, dona de casa ideal, o casal cheio de amores e carinhos, até que chegava o próximo sábado.
            José se cansou daquilo, deu o ultimato, Cleo, ou você para com isso ou volto para a casa da minha mãe, Pois volte, descuidar das unhas eu não posso.
            Conheciam-se muito pouco, José e Cleonice, antes do apressado casamento.

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