quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Shakespeare sempre




             Dois livros me acompanham ao longo da vida – perdi a conta do número de releituras –, e o desejo de relê-los permanece vivo, fontes inesgotáveis para a tentativa sempre incompleta de conhecimento da alma humana. A cada releitura um novo aspecto se revela. São eles Édipo Rei, de Sófocles, e Hamlet, de Shakespeare.
            Quando da publicação de Hamlet – poema ilimitado, de Harold Bloom (Objetiva, 2004), autor do Cânone Ocidental e especialista em Shakespeare, nasceu-me a esperança de que pudesse lançar alguma luz naquele que considero um dos trechos mais significativos e importantes da literatura universal:

Hamlet:
Ser ou não ser, essa é que é a questão:
         Será mais nobre suportar na mente
         As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer – dormir,
Nada mais; e dizer que pelo sono
Findam-se as dores, como os mil abalos
Inerentes à carne – é a conclusão
Que devemos buscar. Morrer – dormir;
Dormir, talvez sonhar – eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invólucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
(Tradução de José Roberto O`Shea)

            Bloom pouco ou nada acrescenta sobre esta magnífica passagem: “Temos aqui duas grandes metáforas em conflito: a libertação com respeito ao corpo (invólucro mortal), tudo o que haveremos de perder, e o país ignorado, o reino da morte, de onde nunca ninguém voltou, mas de onde o espectro do Rei Hamlet escapa duas vezes durante a peça.”
            No entanto, o capítulo intitulado Com Shakespeare, escrito por J.-B. Pontalis, no livro Freud com os escritores, deste mesmo autor e Eduardo Gómez Mango (Três Estrelas, 2013), é riquíssimo em novas interpretações. O livro destaca a influência de autores como o próprio Shakespeare, Goethe, Schiller, Hoffmann, Heine, Dostoiévski, Schnitzler, Romain Rolland, Thomas Mann, Stefan Zweig, Émile Zola, sobre o pensamento freudiano.
            Voltemos a Hamlet, na interpretação de Pontalis, que afirma:

“Hamlet é um herói mais trágico do que Édipo (lembremos o título: A tragédia de Hamlet), pois a tragédia se consuma na cena interior: a discórdia, o dilaceramento, a incoerência,  tão manifestos em suas réplicas, estão dentro dele. Duas forças antagônicas de igual potência lutam sem trégua nesse palco interior: agir ou não agir, vingar o assassinato do pai, tornando-se por sua vez assassino, ou ele mesmo morrer, to be or not to be. Do início ao fim, da aparição do espectro até sua própria morte, ele é perseguido pelo sofrimento. Hamlet é o homem do sofrimento. Seu ato de vingança permanecerá, qual uma carta que não chega ao destinatário, sempre “a caminho””.

            E Pontalis arremata:

“Ora, o que caracteriza Hamlet é um conflito não resolvido que está na origem de sua inibição. Vejamos nele um neurótico que, como muitos de nós, não consegue se separar de seus primeiros objetos de amor e ódio. Ele, porém, desconhece o fato. Isso se chama recalcamento, e é uma tentativa vã, pois, felizmente, o recalcado retorna...”

            Em Freud com os escritores, Mango termina o excelente prefácio com uma observação importante: “Freud teve a coragem de introduzir no espaço do saber científico a figura do Dichter, do poeta, severamente apartado pela academia de sua época. Fez do poeta um dos interlocutores primordiais de sua obra. Reconhecia na Dichtung [criação literária] um acesso privilegiado à verdade psíquica”.
            É preciso mais para que nos dediquemos com afinco à Literatura?

2 comentários:

  1. Nessa hora fico pensando o que Freu pensaria do nosso Machado de Assis ... Ou Guimarães Rosa.

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    1. Ele certamente haveria de gostar muito de Machado de Assis, um profundo conhecedor da alma humana.

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