Tanto mais o país
afunda, torturado por questões políticas e econômicas insolúveis, mais
espetacular torna-se o cinema argentino. (Será isso uma lei geral, passível de
ser aplicada a outras culturas que padeçam das mesmas circunstâncias? Alguma
relação com o Brasil do tempo da ditadura? Bem, os tempos são outros e o cinema
nacional não deslancha.)
Vamos ao tema central da crônica: o
magnífico Relatos selvagens, do diretor argentino Damián Szifron, filme que
representará o cinema portenho no Oscar de 2015.
O leitor não se preocupe, não vou
contar o enredo (o que invariavelmente acontece nas sessões de análise: o
paciente não quer saber se o analista já viu ou ainda verá determinado filme:
ele chega e conta! É uma necessidade.)
A esta altura dos acontecimentos, até
quem não viu o filme sabe que ele é composto de seis histórias curtas, tramas
que são levadas a situações-limite, com desfechos imprevisíveis. Alguma forma
de violência está sempre presente, sem dispensar a dose certa de humor. A vida
como ela é, diria o nosso Nelson.
Uma das historietas baseia-se num
fato corriqueiro, banal, cotidiano, prosaico mesmo: uma desavença no trânsito,
o que pode acontecer – se já não terá acontecido! – com qualquer um de nós que
dirigimos nossos automóveis por este mundo afora. O carro da frente, trafegando
na pista errada, atrapalha a passagem; aquele que chega deseja fazer a
ultrapassagem imediatamente; o que vai à frente não permite; o de trás bate os
faróis buzina liga o farol alto buzina novamente até que consegue a
ultrapassagem. (A situação não há de ser estranha à maioria dos leitores...)
Quando se dá a ultrapassagem, os
dois carros emparelhados, aquele que passa baixa o vidro, xinga o motorista
palerma – lesma filho-da-puta –, e completa a cena com um gesto obsceno. E
passa.
É aí que tem início o inferno,
propiciado por outro fato corriqueiro, banal, cotidiano, prosaico: um pneu
furado! (Quem assistiu o filme há de pensar duas vezes antes de afrontar algum
barbeiro no trânsito...)
Onde a ficção, onde a realidade? Se
os fatos apresentados nos Relatos pertencem ao nosso cotidiano, a arte fica por
conta de como eles são retratados. Além de contar com grandes atores, incluindo
o indefectível Ricardo Darin, o filme tem excelente roteiro, ótima fotografia,
som perfeito, deliciosa trilha sonora, além da força das imagens, naturalmente.
Não faço votos que a Argentina
continue afundando (exceção feita ao futebol, é claro...), não sou desses que
nutrem ódio mortal aos hermanos, mas
sim que o cinema portenho continue brilhando, para alegria – e inveja – dos
brasileiros.
Precisamos todos ver esse filme, assim tão bem comentado!
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