segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A poesia de Ana Cristina Cesar




Os escritos de Ana Cristina Cesar – poesia e prosa – acabam de ser reeditados pela Companhia da Letras, sob o título de “poética”. A edição é bem cuidada (merecia capa dura), incluindo livros esgotados e textos inéditos, além de posfácio, apêndice e cronologia da vida e obra. A capa ficou bonita, com a hemiface da autora em rosa e os vastos cabelos em azul.
            Após 30 anos de sua morte, Ana Cristina Cesar parece que se tornou unanimidade. No início dos anos 80, li seus poemas com entusiasmo, pela originalidade, modernidade, capacidade de surpreender e emocionar. Jamais me esquecerei dos versos
                                                
é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço

do poema intitulado “recuperação da adolescência”, do primeiro livro Cenas de Abril, de 1979.
            O livro traz, na sequência, a “correspondência completa” (1979), “luvas de pelica” (1980), “a teus pés” (1982), que se tornaria sua obra mais conhecida, “inéditos e dispersos” (1985), “antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa” (2008), e por fim a “visita à oficina”, publicada pela primeira vez na atual edição.
            Esta última seção revela os exercícios de escrita efetuados pela autora, ilustrados com os respectivos fac-símiles, acompanhados de uma interessante observação do curador Armando Freitas Filho:

“Afinal, numa época em que os rascunhos quase desapareceram por causa do computador, que absorve (1) todas as tentativas que parecem frustradas, nada como publicar o progresso, o empenho e a arte de uma poeta definitiva nos bastidores de sua criação.”
           
Eis o que estamos perdendo, com a chegada inevitável do computador no modo de trabalhar dos escritores! Rascunhos, exercícios de escrita, o denominado working in progress, ideias soltas, versos esparsos, títulos de romance, anotações para futuros desenvolvimentos, tudo isso que ainda não é a versão definitiva mas que tem seu valor intrínseco, datilografado ou manuscrito, ficava guardado num baú, numa caixa de sapatos, em alguma pasta de papelão com a etiqueta RASCUNHO, papeis que seriam descobertos provavelmente após a morte do autor. Em alguns casos, valem uma fortuna!
            O baú mais famoso é sem dúvida o de Fernando Pessoa, que até hoje continua sendo desvendado. Há incontáveis outros exemplos, entre eles o baú de Kafka, revelado ao mundo por Max Brod, seu amigo e testamenteiro.
            Tudo isso deixa de existir, pois o computador apaga tudo aquilo que o autor não considera como a última e definitiva (e perfeita) versão de sua obra. Uma pena!
            Numa dessas pastas – a Pasta Rosa – foi encontrada uma tentativa (isso sou eu quem diz) de haicai:

haikai

hem? hem? quital
ser Orlando
na vida real?
           
            Termino esta crônica com pequeno e brilhante texto de Viviana Bosi, sobre a poeta:

“Um leitor sonhou que abria o livro A teus pés. Então leu um poema que na vida acordada conhecia, mas como se fosse a primeira vez. O perplexo sonhador, segurando o pequeno volume e repetindo as palavras do poema, abismava-se com a dupla natureza da sua experiência: alguma coisa meio incompreensível o atraia enquanto procurava fazer emergir, do fundo da memória, uma sensação entre o reconhecimento e o espanto. Percebeu, fascinado, o que constitui a ambiguidade insuperável daquela escrita: o leitor sempre percorrerá o livro pela primeira vez, tomado pela perturbação. Pois um dos efeitos da radicalidade de Ana Cristina Cesar consiste na impossibilidade de se apossar de seus versos. Não há, o mais das vezes, unidade coerente que proporcione estabilidade. A recordação concorre com a simultânea impressão de estranheza.”

            Não posso descrever melhor do que isso a emoção provocada pela re-leitura de Ana Cristina Cesar.

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(1) Na referida edição está impressa a palavra “absolve”,  que penso seja um erro de impressão. Computador não é juiz.

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