Carta
à amiga Débora.
Brasília,
abril de 2001.
Querida Débora,
nem te conto!
Uma das razões pelas quais adoro a minha profissão é que
fico conhecendo gente, principalmente homens, porque você sabe, sou a única do
Salão a cortar cabelo de homem, aparecem meninos pequenos levados pela mãe,
mocinhos, homens maduros e velhos, para cada geração há um corte diferente,
gosto disso, às vezes invento um corte novo, sempre com a autorização do
freguês, é claro. Mas digo isso para contar que outro dia apareceu um senhor
muito distinto, a cabeça toda branca, tristíssimo porque havia se separado da
esposa, e mesmo assim tivemos uma ótima conversa. Ele percebeu que eu estava
lendo Dalton Trevisan – vou lhe contar um segredo, Débora, deixo os livros
sobre o balcão, bem à vista, de propósito, pretexto para começar uma conversa –
ele viu o livrinho e perguntou se eu gostava de ler, Ler, escrever e cortar
cabelo de homem, esta é minha infalível resposta. Se o sujeito tem o mesmo
gosto, pronto, o papo vai longe!
E o Dr. Alberto, esse o seu nome, era dos que gostavam.
Quando soube que eu escrevia, convidou-me para uma oficina de escrita literária
que ele coordena, imagine você! Não tenho coragem de contar isso para ninguém,
Débora, vão dizer que estou ficando cada dia mais besta. Será que estou mesmo?
Bem, já fui a duas reuniões, mais ou menos dez pessoas,
gente instruída, médicos, psicólogos, um engenheiro, e eu lá, CABELEIREIRA. Não
me fiz de rogada. No segundo dia levei um continho que escrevi faz tempo, cheio
de palavrões, fiz o maior sucesso, você nem sabe!
É assim que funciona a oficina: primeiro Dr. Alberto lê
um trecho de um livro qualquer que ele escolhe, de Pe. António Vieira a Marcelo
Mirisola, e todos comentam – ele faz questão de dizer que não é professor de literatura,
que está ali para aprender. Mas ele tem uma biblioteca enorme, quase morri de
inveja, e lê pra caralho, menina! Depois cada um apresenta seu próprio texto e
todos comentam. Tudo muito democrático e amigável, se você quer saber. Não
tenho dúvidas de que meu texto tinha falhas, mas as críticas foram feitas tão
delicadas que até pareciam elogios. Estou aproveitando muito, Débora.
Você pode me perguntar, Pra que serve isso tudo, de que
adianta uma cabeleireira saber escrever, o que você ganha com isso, Suzete? Não
sei responder, Débora, só sei que me dá um enorme prazer; a gente não precisa
comer, beber água, fazer as tais necessidades fisiológicas? Para mim, escrever
virou mais uma dessas necessidades. Você não imagina o gosto que me dá,
escrever estas cartas para você!
Outro dia encontrei num sebo um livrinho com a
correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Você
precisa ver com que carinho eles se tratavam, e com que cuidado escreviam as
cartas! Vou copiar um trechinho de carta de Drummond a Mário, escrita em
Itabira, em agosto de 1926:
“Mário amigo
Sei que você terá notado meu silêncio porém não se
zangou com ele. Em todo caso, com a minha velha mania de explicar, explico.
Andei numa afobação danada montando casa. Agora casa está montada e você sabe
que tem um lugarzinho nela. Não sei o que você pensará desse oferecimento duma
hospedagem tão problemática, mas é certo que mesmo as coisas impossíveis
acontecem, e quem sabe se um dia, quando tivermos automóvel, não abraçarei você
aqui nessas serranias? Fico sonhando com a alegre possibilidade e me sinto
feliz com isso. Pois é. Moro numa casinha branca, a única do beco, entre
laranjeiras, jaboticabeiras e uma casuarina toda trançada de erva de passarinho
que mesmo assim assobia de fazer gosto. Minha vida ficou simples de repente,
sem sustos, sem especulações, sem inquietação. Tudo influência do cenário novo
sobre a sensibilidade sequiosa de novas formas repousantes. É possível que
amanhã eu acorde com um gosto ruim na boca e um bruto peso na alma dizendo
diabo! E maldizendo a vida. Não creio muito em mim não, acho que sou um
grandessíssimo bilontra, por isso depois da confissão otimista faço esta
reserva necessária. Só digo que neste momento, escrevendo a você sou feliz
dentro das quatro paredes brancas do meu escritório. E como você desempenha um
papel muito importante na minha vida sentimental preciso dizer isso a você,
como quem abraça agradecido a um benfeitor.”
Não é lindo de chorar, Débora! Que carinho, que
intimidade respeitosa, que amizade! E assim vou aprendendo um pouquinho,
copiando estas cartas de gente que sabe escrever cartas.
Um beijo grande da sempre sua
Suzete.
P.S.: Eu não sabia o que
era bilontra e tive que ir ao dicionário: pode ser patife, velhaco, mas pode
ser também pessoa de pouca importância, um joão-ninguém. Acho que o Carlos
empregou a palavra neste segundo significado. Puxa, logo ele, o grande Carlos Drummond
de Andrade!
Suzete é uma figura!
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