domingo, 23 de dezembro de 2012

Comporte-se!


A mãe, sempre amantíssima, ao deixar a filhinha de dois anos com os avós, para que estes pudessem usufruir da companhia da neta por um dia, ao despedir-se da menina, recomendou séria, compenetrada no tom de voz, com a inabalável autoridade de mãe, Comporte-se direitinho, minha filha!
            O avô tomou a criança nos braços e não pôde evitar um pensamento, O que será que passa pela cabeça de uma criança de dois anos ao ouvir recomendação como esta, Comporte-se direitinho, minha filha! Pôde inferir, o avô, pela carinhosa e íntima entonação da mãe, que aquela não era a primeira vez que tal prescrição era transmitida à criança, que, de fato, recebeu-a com tranquilidade.
Como uma menina de dois anos deve comportar-se?, interrogou-se o avô. Ele mesmo não encontrou resposta fácil à pergunta, embora caminhasse célere para os setenta. Lembrou-se então de Marcel Proust, no monumental Em busca do tempo perdido, logo no início de No caminho de Swann, ao dar voz ao narrador, ainda um menino mal entrado na adolescência:

“Ergui-me, tinha um desejo irresistível de beijar a mão da dama de cor-de-rosa, mas parecia que seria algo de audacioso como um rapto. Meu coração palpitava enquanto eu dizia “Devo fazê-lo, não devo fazê-lo”, depois deixei de me perguntar o que devia fazer, para que pudesse fazer qualquer coisa. E em um gesto cego e insensato, despojado de todas as razões que um momento antes encontrara em seu favor, levei aos lábios a mão que ela me estendia.”

            Tempos atrás, às voltas com pensamentos semelhantes àqueles que vieram ao avô ao tomar no colo a netinha de dois anos, escrevi o que chamei de:

Inútil dilema

certo      errado
certo      errado
certo      errado

inútil dilema

o que se aprende
(no limite)
é que a vida
pode ser vivida

de forma
deliciosamente irresponsável

            Fui (mal) interpretado, julgado com severidade e condenado, sem direito a apelação. Suspeito que a expressão acusatória chave do processo a que fui submetido tenha sido aquela “deliciosamente irresponsável”. A expressão é composta por duas palavras, à primeira vista, irreconciliáveis, sob o ponto de vista moral: se há irresponsabilidade não pode haver prazer; se há prazer, há que haver responsabilidade. Definitivamente, irresponsabilidade prazerosa é proibido!
            O que pode fazer uma criança de dois anos entregue aos avós, liberta portanto do “jugo” dos pais, por um dia que seja? O que pode fazer um adolescente diante do impulso sexual frente à primeira namorada? Comportarem-se?
            Em meu ponto de vista, a expressão que merece real consideração no poemeto aqui apresentado é “no limite”, intencionalmente colocada entre parêntesis. Vamos aprendendo, ao longo da vida (antes mesmo até dos dois anos de idade), que há um limite a ser obedecido entre a busca do prazer e a realidade, mas que não precisa transformar-se em um dilema (inútil) excessivo, contínuo, permanente, trágico, rígido, punitivo, carrasco, moralista, religioso, entre o certo e o errado.
            O “gesto cego e insensato” diante de “um desejo irresistível” descrito por Proust não me parece nem cego nem insensato, sob a óptica do Inconsciente. Se vivido sem culpa, torna-se deliciosamente irresponsável. Ou seja, livre daquela responsabilidade excessiva, contínua, permanente, trágica, rígida, punitiva, moralista, religiosa do inútil dilema entre o “devo, não devo” proustiano, entre o certo e o errado.
            Proust vai mais além ao afirmar que “depois deixei de me perguntar o que devia fazer, para que pudesse fazer qualquer coisa”. Ora, deixar de perguntar beira a irresponsabilidade, se é que não se constitui nela mesma! Fazer qualquer coisa também sugere total falta de responsabilidade. Porém, há um outro modo de ver as coisas, o de que é preciso, às vezes, deixar de cercear-se para ser o que se é. O que pode ser feito de maneira deliciosamente irresponsável, obedecidos os limites.
            E a netinha comportou-se maravilhosamente, para felicidade plena dos avós!
            

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