terça-feira, 7 de agosto de 2012

A morte de Camões


“Entra, chegaste à tua casa.”
            Com estas palavras Saramago recebeu o cãozinho sem dono, que entrou assustado em seu jardim, em Lanzarote. O escritor havia acabado de receber a notícia, através do Ministro da Cultura de Portugal, de que ganhara o Prêmio Camões, a maior honraria literária da língua portuguesa. Não poderia ser outro o nome a ser conferido ao pequeno animal: Camões!
            Tempos atrás, quando já sentia falta da companhia de um cachorro, resolvemos, eu e minha mulher, adquirir um Yorkshire de boa estirpe. Dei-lhe o nome de Camões.
            Desde então, quando na rua alguém me ouve chamá-lo – e às vezes faço-o de propósito –, infalivelmente isso causa surpresa, espanto, e um certo risinho em tom de mofa: nome tão majestoso para animal tão pequenino?
 Camões?, repete admirado o transeunte.
Pois é a deixa que espero e me convém:
 Sim, Camões é como o chamamos. Mas não por causa do poeta português, aquele dos Lusíadas. Minha homenagem é a José Saramago, que possui um cão que atende pela mesma alcunha.
      Ah!
      Conhece Saramago? Já leu algum livro dele?
      Não conheço...
Pronto, está entabulada a conversa. Faço então minha propaganda do Saramago, elogio-lhe o estilo, recomendo o Ensaio sobre a cegueira... Viu o filme? Não sugiro de cara o Evangelho, com medo de espantar o freguês, pois o livro espantou até mesmo os portugueses. E o escritor foi se esconder – e protestar – em Lanzarote.
Quando o transeunte responde que sim, que conhece Saramago, que já leu livro dele, então o papo fica ainda mais animado.
      Qual o seu preferido?
      Memorial do convento, respondo sem titubear.
      Este eu não li.
      Pois então leia, obra prima!
O assunto vai longe, se eu e o transeunte dispomos de tempo e vontade de conversar, conversinha despretensiosa, afetuosa porque desinteressada. Ainda melhor se ambos gostamos de literatura ... e de cães.
Camões apenas ouve, quando não está mais preocupado em carimbar algum poste. E se reencontro aquela pessoa, às sextas-feiras pela manhã no supermercado, local propício a conversinhas despretensiosas, a pergunta que ouvirei será sempre a mesma:
      Como vai o Camões?
      Vai bem, obrigado!
Pois agora chega a notícia da morte de Camões, o do Saramago, veiculada por Pilar, no site da Fundação Saramago. Ficamos tristes. Acontece que meu Camõesinho vai completar 12 anos em breve. Vezes 7, são 84. Ficou mais velho que o dono. Está bem surdo, como o dono. E neurastênico... Cansa-se com facilidade. Sobraram-lhe poucos dentes, mas ainda come com disposição. E espera ansiosamente pelas caminhadas do fim de semana. Como o dono, Camões caminha para o destino de todos nós. Dizem que os animais não têm consciência da inexorabilidade da morte. Não estou certo disso. Recentemente, em Oxford, cientistas assinaram manifesto atestando que alguns animais, cavalos, gatos, golfinhos, elefantes, os cães naturalmente, têm consciência. Donde a certeza de que não sabem que a morte se lhes avizinha?
Talvez por isso o nosso Camões ande pedindo tanto colo.

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