“Entra, chegaste à tua casa.”
Com estas palavras
Saramago recebeu o cãozinho sem dono, que entrou assustado em seu jardim, em
Lanzarote. O escritor havia acabado de receber a notícia, através do Ministro
da Cultura de Portugal, de que ganhara o Prêmio Camões, a maior honraria
literária da língua portuguesa. Não poderia ser outro o nome a ser conferido ao
pequeno animal: Camões!
Tempos atrás,
quando já sentia falta da companhia de um cachorro, resolvemos, eu e minha
mulher, adquirir um Yorkshire de boa estirpe. Dei-lhe o nome de Camões.
Desde então,
quando na rua alguém me ouve chamá-lo – e às vezes faço-o de propósito –, infalivelmente
isso causa surpresa, espanto, e um certo risinho em tom de mofa: nome tão majestoso
para animal tão pequenino?
– Camões?,
repete admirado o transeunte.
Pois é a
deixa que espero e me convém:
– Sim,
Camões é como o chamamos. Mas não por causa do poeta português, aquele dos
Lusíadas. Minha homenagem é a José Saramago, que possui um cão que atende pela
mesma alcunha.
–
Ah!
–
Conhece Saramago? Já leu
algum livro dele?
–
Não conheço...
Pronto, está entabulada a conversa. Faço então minha
propaganda do Saramago, elogio-lhe o estilo, recomendo o Ensaio sobre a
cegueira... Viu o filme? Não sugiro de cara o Evangelho, com medo de espantar o
freguês, pois o livro espantou até mesmo os portugueses. E o escritor foi se
esconder – e protestar – em Lanzarote.
Quando o transeunte responde que sim, que
conhece Saramago, que já leu livro dele, então o papo fica ainda mais animado.
–
Qual o seu preferido?
–
Memorial do convento,
respondo sem titubear.
–
Este eu não li.
–
Pois então leia, obra prima!
O assunto vai longe, se eu e o transeunte
dispomos de tempo e vontade de conversar, conversinha despretensiosa, afetuosa
porque desinteressada. Ainda melhor se ambos gostamos de literatura ... e de
cães.
Camões apenas ouve, quando não está mais
preocupado em carimbar algum poste. E se reencontro aquela pessoa, às
sextas-feiras pela manhã no supermercado, local propício a conversinhas
despretensiosas, a pergunta que ouvirei será sempre a mesma:
–
Como vai o Camões?
–
Vai bem, obrigado!
Pois agora chega a notícia da morte de Camões,
o do Saramago, veiculada por Pilar, no site da Fundação Saramago. Ficamos
tristes. Acontece que meu Camõesinho vai completar 12 anos em breve. Vezes 7,
são 84. Ficou mais velho que o dono. Está bem surdo, como o dono. E
neurastênico... Cansa-se com facilidade. Sobraram-lhe poucos dentes, mas ainda
come com disposição. E espera ansiosamente pelas caminhadas do fim de semana.
Como o dono, Camões caminha para o destino de todos nós. Dizem que os animais
não têm consciência da inexorabilidade da morte. Não estou certo disso. Recentemente,
em Oxford, cientistas assinaram manifesto atestando que alguns animais,
cavalos, gatos, golfinhos, elefantes, os cães naturalmente, têm consciência.
Donde a certeza de que não sabem que a morte se lhes avizinha?
Talvez por isso o nosso Camões ande pedindo
tanto colo.
Sensacional André, adorei !
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