“Boris Cyrulnik: “Os adolescentes mais afetados pela pandemia terão depressão crônica quando adultos”. Neuropsiquiatra francês, filho de judeus que morreram no Holocausto, cientista e divulgador, é o criador do conceito de ‘resiliência’. Publica agora um novo livro no qual afirma que o ambiente esculpe o cérebro.”Entrevista concedida a Marc Bassets para El País (31 out 2021), em conversa sobre a pandemia de covid-19.
Cyrulnik acaba de publicar Psicoecología. El entorno y las estaciones del alma (Psicoecologia ― O ambiente e as estações da alma).
P. Tenho a impressão de que o senhor passou a vida tentando responder à pergunta sobre como é possível ter sobrevivido e superado as condições muito adversas da sua infância.
R. Acima de tudo, me perguntava como foi possível o nazismo. Os alemães eram o povo mais culto da Europa e foi na casa deles onde aconteceu um crime imenso contra os judeus, contra os poloneses, contra os russos, contra quase toda a Europa. Mais tarde, quando já trabalhava como médico e a assistente social dizia às crianças: “Olha de onde você veio, nunca poderá seguir em frente, nunca poderá estudar, não tem família”..., me lembrava do que me diziam quando eu era criança. Por isso disse a mim mesmo que trabalharia para ajudar aquelas crianças a seguir em frente.
P. A resiliência.
R. Sim, um processo familiar, amistoso e cultural que lhes permita recuperar um bom desenvolvimento apesar do traumatismo.
P. O cérebro não é algo isolado e imutável, como afirma em Psicoecologia.
R. Quando eu estudava medicina, diziam-me que o cérebro estava na caixa craniana, separado do mundo, e que chegávamos com um armazém de bilhões de neurônios e que todos os dias perdíamos alguns. Agora constatamos, graças à neuroimagem e à neurobiologia, que acontece exatamente o contrário. O ambiente esculpe o cérebro, molda-o. [Grifo meu.]
P. O cérebro é uma escultura?
R. Quando uma criança é privada da alteridade, seus dois lobos pré-frontais atrofiam, o circuito límbico desaparece e as tonsilas rinoencefálicas ficam hipertrofiadas. O cérebro se torna disfuncional porque não há ambiente, não há alteridade. Isso se fotografa, é muito fácil ver. Mas quando se reorganiza o ambiente, e desde que não tenhamos deixado a criança sozinha por muito tempo, vemos que os lobos pré-frontais e o circuito da memória se desenvolvem novamente e as duas tonsilas desligam. Ou seja, quando agimos sobre o ambiente, modificamos a escultura cerebral.
P. O que exatamente é o ambiente?
R. Existem três ambientes. O primeiro é o ambiente imediato do bebê: o líquido amniótico, a química. O segundo é o afetivo: a mãe, o pai, a família, a vizinhança, a escola. E o terceiro é o ambiente verbal: os relatos, os mitos. E esse ambiente também participa da escultura do cérebro.
[Digo eu: interessante a expressão “ambiente verbal”. Refere-se à força da palavra, da linguagem, alimento indispensável para o desenvolvimento do espírito. Penso que a leitura faz parte desse ambiente, e deve ser cultivada ao longo de toda a vida, o que haverá de modificar constantemente a “escultura cerebral”, no dizer de Cyrulnik.]
P. Por que os adolescentes são os mais afetados?
R. Na adolescência ocorre uma poda de neurônios. O cérebro funciona melhor com menos neurônios, com menos energia. Os adolescentes têm dois ou três anos para aprender a aprender, para se orientar em uma direção. Se por um conflito familiar ou porque os meninos preferem jogar futebol, esses dois anos são perdidos, depois lhes custa voltar aos eixos. Na escola ou faculdade, você ri, concorda ou discorda de um professor, seu cérebro está ativado. Diante de uma tela, o cérebro fica entorpecido.
P. Quais são as consequências de tal situação para esses adolescentes quando adultos?
R. Estarão em depressão crônica. Terão pequenos ofícios que não os interessarão. Aprenderão que a sociedade se encarregará deles. Perderam um período sensível do seu desenvolvimento. Para se reconectar, terão de trabalhar 10 vezes mais.
P. Eu vejo o senhor pessimista.
R. Sim e não. Isto não foi uma crise. Em uma crise de epilepsia a pessoa fala, cai, tem convulsões, se levanta e acaba a frase. As coisas voltam a ser como antes. E agora as coisas voltarão, mas não como antes. A palavra adequada agora não é crise: é catástrofe. Depois das guerras e das epidemias houve revoluções culturais. A formação profissional, a universidade, a relação entre homens e mulheres, a velhice, tudo isso já está sendo repensado. Vamos repensar nossa maneira de viver juntos.
Ótima entrevista. Vale a pena lê-la por inteiro.
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