Devemos queimar estátuas de Bernini? Quem pergunta é Leandro Karnal, em sua crônica de hoje para O Estado de S.Paulo (6 out 2021).
Ele inicia falando da Galeria Borghese, em Roma, um palácio do século 17 construído para o cardeal Scipione Caffarelli-Borghese, onde se acumulam
esculturas de Bernini (1598-1680), o genial napolitano que, “junto a Michelangelo e Rodin, forma uma das trindades sagradas dessa arte”.
Descreve Karnal: “O deus do mundo infernal raptou a bela Prosérpina (chamada de Perséfone pelos gregos). A estátua de Bernini mostra o momento em que ele acabou de emergir das profundezas e pegou a divindade feminina à força. As mãos do deus estão enterradas na coxa da pobre abduzida e fazem tanta pressão que o escultor mostra os dedos afundados no mármore como se fossem carne macia. Maravilha da técnica!”
Outra escultura: “Apolo persegue uma ninfa, Dafne, já que foi atingido pela seta do amor de Cupido. O filho de Zeus tenta agarrá-la à força. Ela roga ao pai, o deus-rio Peneu, que mude sua forma, transformando-a em uma árvore, um loureiro.”
Karnal prossegue: “...as duas esculturas maravilhosas são cenas de um assédio, de uma tentativa de sexo forçado e de rapto. Foram esculpidas por um homem e voltadas a um público dominante masculino. São obras impactantes em mármore que destacam um ato, aqui, petrificado: os homens, mais fortes e ágeis, pegam à força aquilo que as mulheres recusam.”
“Os valores, felizmente, mudam. As estátuas, hoje, seriam consideradas apologia ao estupro. Esculpidas por alguém no século 21, seriam atacadas. Continuam sendo obras-primas de outra época. O mundo mudou. A memória contida nas obras de Bernini deveria ser eliminada? Os jovens que passeiam pelas galerias e contemplam as peças ficariam tomados de ideias perversas de violência contra mulheres?”
Karnal conclui: “Toda obra de arte traz o espelho de uma sociedade. Ela é uma criação e, ao mesmo tempo, um documento. ...Eliminar documentos é algo inquisitorial, um gesto de poder.”
Embora este assunto tenha saído das primeiras páginas dos jornais, vez ou outra volta à baila. Sou visceralmente contra a destruição de monumentos, tenho defendido esta ideia no blog, mas não havia pensado no magnífico argumento agora lançado por Karnal. A Galeria Borghese é um dos lugares mais lindos que se pode visitar no mundo e, de fato, as esculturas de Bernini são o ponto alto do museu. Queimá-las? Nem pensar!
https://cultura.estadao.com.br/colunas/leandro-karnal
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