sábado, 16 de outubro de 2021

"O rompimento do mundo dos humanos"

 

O rompimento do mundo dos humanos - Como a apreensão religiosa da realidade destrói a linguagem e ameaça o enfrentamento de nossa própria extinção: este é o título do ótimo texto de Eliane Brum para El País (14 out 2021).

A brilhante jornalista inicia destacando o valor da palavra: “Como humanos, a linguagem é o mundo que habitamos. Basta tentar imaginar um mundo em que não podemos usar palavras para dizer de nós e dos outros para compreender o que isso significa. Ou um mundo em que aquilo que você diz não é entendido pelo outro, e o que o outro diz não é entendido por você, para alcançar o que é ser reduzido a sons porque as palavras perderam seu significado e, portanto, se tornaram fantasmagorias. ... a palavra é o que nos tece. Aquilo que chamamos mundo é uma trama de palavras.”

E se a linguagem for destruída? pergunta ela. E afirma: “Essa é a experiência do bolsonarismo, nome dado no Brasil a um fenômeno que se dissemina no planeta, ganhando em outros países nomes de outros déspotas.”

Eliane prossegue: “O que está em jogo é algo mais profundo: uma mudança na forma de apreensão da realidade... Por uma série de razões, o verbo que progressivamente passou a mediar uma parcela significativa das pessoas na sua relação com a realidade é “acreditar”. ... É uma mediação religiosa da realidade, determinada pela fé. A crença se antecipa aos fatos, e assim os fatos já não importam. É como se as pessoas passassem a ler a realidade da mesma forma que leem a Bíblia.” (O grifo é meu.)

Parece que a expansão do “neopentecostalismo de mercado”, expressão da própria articulista, tem acelerado esse processo.  

            A este conjunto de ideias aqui resumidas, apresentadas por Eliane Brum, dou o nome de fundamentalismo. Porque é preciso dar nome às coisas. Acreditar, em vez de pensar, é o modo de funcionamento psíquico que nutre o fanatismo religioso, político, e de toda natureza. Trata-se, no fundo, de manifestação primitiva, infantil mesma, do ser humano, do tempo em que bastava ouvir e obedecer aos pais (ou deuses) que tudo sabiam. Aquele tempo era bem mais “cômodo”, o alimento do espírito já vinha pronto e mastigado. Vale destacar que a palavra infantil é aqui empregada sem qualquer conotação pejorativa; serve apenas para designar uma determinada época tanto da evolução individual quanto da humanidade em geral.

A jornalista conclui: “... Esse é o abismo do qual nos aproximamos. Estamos à beira de algo com a magnitude do rompimento da linguagem que une os humanos, para além das diferenças de língua: uma parcela da população global aderindo a uma realidade falsificada, mas que, pela adesão, passa a se tornar real. ... Se o princípio é o verbo, o fim pode ser o silenciamento. Mesmo que ele seja cheio de gritos entre aqueles que já não têm linguagem comum para compreender uns aos outros.” 

Salvemos a palavra.

 

 

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-10-14/o-rompimento-do-mundo-dos-humanos.html?event_log=oklogin

 

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