quinta-feira, 4 de março de 2021

A sopa

 

Mãe e filha nunca se deram bem. Difícil precisar quando a cisma teve início, mas foi certamente na mais tenra idade de Lúcia, época em que Gertrudes passava por terríveis dificuldades no casamento. O marido, alcoólatra, abandonou-a na miséria, com filha pequena para criar.  

            Gertrudes deu conta do recado, a filha cresceu sadia, vistosa, bonita mesmo, além de inteligente e estudiosa. O preço que ambas tiveram que pagar pela sobrevivência em circunstâncias tão desfavoráveis foi a da amargura perante a vida. Não raro o sofrimento intenso e continuado marca as pessoas com um travo de fel que jamais se apaga. O ressentimento da mãe foi transmitido à filha, que por sua vez não pôde superá-lo ao longo da vida.

            Em idade avançada, Gertrudes restou sob os cuidados de Lúcia. Dava trabalho, padecia de enxaqueca crônica, dizia-se alérgica a todo tipo de alimentos, alegava intolerância às carnes de qualquer espécie, de modo que se tornou vegetariana. Diante de tantas restrições, ainda reclamava da pobreza do sabor das refeições que lhe eram servidas. 

            Lúcia tolerava com dificuldade a rabugice da mãe, a eterna insatisfação para com as relações familiares, as pessoas julgadas sempre com excessiva severidade moral, o imutável ressentimento. Ela, por sua vez, julgava que a mãe não lhe dava o devido valor pelo tratamento dispensado. Gertrudes certa feita chegou mesmo a enunciar a frase definitiva:

            – Não tive sorte com a filha que pari.

            Para Lúcia, aquilo foi a morte. Aflorou todo o ódio que sentia pela mãe, o ressentimento transbordou, a relação entre elas atingiu o ápice do desencontro.

            Um acontecimento inesperado, surpreendente mesmo, revestido de significado apenas aparente, veio modificar o ambiente familiar. Durante um certo jantar, todos à mesa, mãe, filha, genro, dois netos a sair da adolescência, comia-se em silêncio, quando Gertrudes afirmou:

            – Como esta sopa está gostosa!

            Uma fala tão singela causou visível alvoroço, os comensais olhando-se entre si com ar de espanto, nunca se ouviu da boca da velha senhora um mínimo elogio que fosse não só à comida como a qualquer fato da vida cotidiana, e agora aquela frase dita com rara sinceridade, espontânea, acompanhada de um discreto sorriso de prazer! Apenas José, o neto mais velho, notou o ar enigmático no rosto de Lúcia, que teceu curto comentário:

            – Foi feita com carinho, mãe.

            O jantar terminou com a família em paz. No dia seguinte, rapaz curioso, José puxou assunto com a mãe, A senhora viu a satisfação da avó ontem no jantar?, Pois é, coisa rara, não!, O que foi que a senhora colocou naquela sopa? Lúcia se surpreendeu com a pergunta do filho, assim tão direta, como quem sabia das coisas. Não pôde mentir:

            – Coloquei caldo de carne, por isso ficou tão saborosa. 

            – Mas a avó não é vegetariana?

            – É. E daí? Ela não sabe que botei carne.

            Lúcia procurou encerrar a conversa com o filho, e ele a perseverar:

– Mas ela não pode comer carne, mãe!

– Tanto pode que comeu! Fiz por vingança meu filho, vingança. Você não pode entender, ninguém pode entender.

            Fardo pesado, o do ressentimento.

                        

7 comentários:

  1. ha ha ha adorei!!!!
    Leitura saborosa também!

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  2. Um ótimo conto psicanalítico. O amargor do abandono era o laço que as unia. A vingança veio em forma de prazer. Genial.

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  3. Ótima história!! Lúcia tem lucidez a respeito de seus sentimos, há luz no fim do túnel.

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  4. Belo conto, Dr André. Saudades das discussões de casos. Abraços, Carol (turma 63).

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    1. Oi Carolina! Visitei a Sopa de letrinhas e gostei muito. Por que não escreve mais? Obrigado pelo comentário!

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  5. Um belo oxímoro: vingança amorosa!
    Conto primoroso!

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