sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Um dia chegarei a Sagres - última leitura

 

“A despeito da minha triste rebeldia, atribuo formas disformes às migalhas de pão que se espalham sobre a mesa. Enquanto acato os produtos da terra, que são poucos na casa, como que vivo de farelos. Sem eles, contudo, não estaria aqui, nesta colina de Lisboa, uma das sete existentes, pela qual perambulo amparando-me nas paredes das casas para não tombar. Após deixar as terras do avô e instalar-me em Lisboa, em Sagres, e depois no mundo, aqui retornei. Quem sou sem as ruinas das urbes humanas e sem os pedaços da minha existência? Quem sou sem estas histórias, meus escombros?”

 

            O trecho pertence a Um dia chegarei a Sagres, o último livro de Nélida Piñon (Ed.Record, 2020). Desejo comentá-lo, porém não me sinto apto para tal. Quem poderia fazer a crítica desse livro hoje no Brasil? Uns poucos, estou certo disso. Eu então, quem sou eu? Nélida é uma acadêmica, premiadíssima, Embaixadora Ibero-Americana da Cultura. Falta-lhe apenas o Nobel de Literatura. Quem sabe?

            A pequena amostra acima nos permite indagações. “Atribuo formas disformes”: se eu escrevesse isso em meu blog, imediatamente meu irmão me enviaria mensagem, me corrigindo. “Acato os produtos da terra”: um novo sentido para o verbo acatar? “Como que vivo de farelos”: por quê não apenas Vivo de farelos, suprimindo o horrível como. “Ruinas das urbes humanas”, “meus escombros”: linguagem sofisticada, eis aqui minha principal indagação. Mas Nélida pode.

            O livro é escrito na primeira pessoa: “Nasci no século XIX, no norte de Portugal, e não sei o que significa ser parte desta nação. Que benefícios os reis, assentados no trono, de diversas linhagens, nos concederam além de agrilhoar o povo aos seus caprichos.”

            Quem fala é Mateus, filho de puta, de pai desconhecido, criado pelo avô, lavrador em pequeno povoado do Minho. O menino recebeu precária educação, a não ser por um certo professor que lhe incutiu fantasias a respeito do Infante D. Henrique, desbravador de mares sem fim. São essas as ferramentas de que Mateus dispõe: machado, enxada, arado, a mão calosa, o braço forte. E muita fantasia para relatar suas memórias, até chegar a Sagres.

            O filho de Joana, a puta, escreve como se fosse um erudito. Mais que isso, com estilo próprio, original, com direito a altas filosofias. Mas Nélida pode.

(É verdade, o escritor tem liberdade para escrever como bem desejar.)

A primeira passagem por Lisboa, vindo da aldeia onde nasceu, é apagada, nada acontece além da sofisticada linguagem. Até que Mateus, enfim, chega a Sagres! Aí surgem personagens curiosas, estranhas, pinçadas do gênero humano, cada qual destinada a representar certo papel na vida de Mateus: dono de hospedaria, a mulher avara do dono de hospedaria, uma obsessiva que cuida da sobrinha paralítica em cadeira-de-rodas, o alfarrabista que coleciona documentos históricos (cultor da verdade), e finalmente um africano dionisíaco.

O estilo da escrita permanece o mesmo, cultíssimo, as palavras escolhidas a dedo. Sai da boca de Mateus: “Eu sofria com o mistério que lhe emoldurava o rosto e o empalidecia, e nunca decifrava. Quantas vezes desviei a mirada sob a vigília da tia que nem por uma fração de tempo permitia-me pousar os olhos na sobrinha. No quarto, livre para sonhar, simulava ter próxima a esfinge de Leocádia.” (Esfinge ou efígie? Mas Nélida pode.)

Ainda Mateus, após ter adotado um cão apelidado Infante: “Passamos a ser três, nós dois e o avô. Uma matilha de humanos e bicho, iludidos com o ânimo do amor.” Bonito!

Arrasta-se a história, até que Mateus volta a Lisboa, um velho desvalido. Num ato de misericórdia, encontra Amélia, outra desvalida, originária do Oriente, e amparam-se mutuamente na pobreza extrema. O livro ganha em emoção – talvez pela primeira vez – com as palavras que Mateus dirige a Amélia, e que ela mal pode compreender. Parece que ele delira, e então conta sua verdadeira história.

Em minha minguada opinião, um bom livro.

 

2 comentários:

  1. Quer o louco dizer: "apenas" um bom livro. É isso?
    Faltou atentar para várias crases mal postas. Nélida pode?

    ResponderExcluir
  2. O mundo se acabando de gripe e o Louco lendo livros de 500 páginas, um atrás do outro. Um irresponsável. Quem escreveu esses trechos pinçados, principalmente o primeiro, pode tudo. Fiquei com vontade de ler o livro. O Louco soube dourar a pílula.

    ResponderExcluir