Aos 19 anos José Mário conseguiu juntar um dinheirinho, sobras daqui e dali, e resolveu experimentar algo inédito em sua curta vida, dar-se um presente. (Naquele instante talvez ele começasse a gostar de si mesmo.)
Pela primeira vez experimentou o dilema de quem nunca havia juntado qualquer soma de dinheiro e muito menos tivesse o desejo de transformar isso na aquisição de algum bem material. Comprar o quê? Queria mesmo uma máquina fotográfica Nikon, porém o dinheiro dava apenas para um LP. Precisava então escolher um LP.
Sob forte influência materna, José Mário se interessou por música erudita; os clássicos Bach, Mozart e Beethoven moldaram seu gosto desde o início. Bom começo. Depois apaixonou-se por Erik Satie, mas isso foi bem depois, melhor não atrapalhar o desenrolar da história.
No centro da cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente no Largo da Carioca, nos idos dos anos 60, havia uma enorme loja de discos no térreo do Edifício Central, com vastíssima coleção de clássicos, além dos populares. José Mário entrou na loja com o coração batendo forte. Analisou com cuidado a prateleira de Bach, Mozart e Beethoven, encantado com a diversidade de gravações, com os álbuns caprichados, nas contracapas uma pequena biografia do autor, o resumo sobre a importância daquela obra específica, dados sobre a orquestra ou sobre o intérprete, um mundo de informações que José Mario devorava sem pressa, havia tirado folga naquela tarde de quarta-feira. Escolheu os Concertos para trompa de Mozart. Grande escolha!
José Mário envelheceu ouvindo música erudita. Adquiriu respeitável coleção de CDs, e nas manhãs de domingo ouvia infalivelmente as Valsas nobres e sentimentais, de Ravel; depois de alguns anos, estas foram substituídas pelo Requiem, de Mozart. Para ele, réquiens, missas, qualquer que fosse a música sacra, não significavam pesar, luto, tristeza, nada disso, ele as ouvia com o encantamento de sempre.
Eram fases, como ele mesmo dizia, Agora estou na fase do estoniano Arvo Pärt, e ouvia o mesmo compositor durante meses. Houve tempo em que parou nos Noturnos, de Chopin; colecionou 11 gravações diferentes, na tentativa de definir sua preferida. Parou também em Stravinski e Shostakovitch, semanas ouvindo The Jazz Album, deste último. Longa foi a fase Villa-Lobos; depois de ouvir quase tudo, parou nas Bachianas, e de lá voltou às Suítes para violoncelo de Bach, em particular à de número 6, lembrando sempre que o irmão preferia a de número 1, e de tanto ouvir Bach e Villa, já não sabia mais o que era de Villa e o que era de Bach, bela fusão musical, diriam os menos ortodoxos. Demência, diriam os racionais. José Mário expandiu seu gosto pela música a ponto de gostar do fantástico Quarteto de cordas e quatro helicópteros, de Karlheinz Stockhausen.
José Mário continuou envelhecendo e com a velhice chegou uma certa surdez, que fez com que o volume do amplificador fosse paulatinamente aumentado, chegando a incomodar vizinhos e própria esposa, Abaixa isso, José Mário, que não tem ninguém surdo por aqui, esbravejava ela. Impossível saber se este fato foi determinante nos acontecimentos que agora passo a narrar.
De repente o próprio José Mário notou que nas últimas semanas ouvia apenas as Sonatas para piano n. 30, 31 e 32, opus 109, 110, 111, de Beethoven, sempre nessa ordem, certo de que elas compunham uma única peça musical, a mais linda de todos os tempos, finalizada pelo segundo movimento da sonata n. 32, opus 111, descrita como Arietta: Adagio molto semplice e cantabile, música do futuro capaz de levá-lo às nuvens, ao céu, ao paraíso enfim, na interpretação de Alexandre Tharaud.
Já com a voz enfraquecida por um tosse crônica, José Mário confidenciava à esposa que sentia muito que a maior parte da humanidade nunca tivesse vivido a experiência de ouvir aquelas sonatas, uma vez na vida que fosse. Talvez elas pudessem ter mudado o mundo para melhor. A força de Beethoven.
José Mário morreu em paz, ouvindo as Sonatas para piano n. 30, 31 e 32, de Ludwig van Beethoven, em uma tarde de fim de primavera.
Há uma melancolia nesta história...
ResponderExcluirAs últimas sonatas para piano, os últimos quartetos de cordas, a Sinfonia n. 9... o Everest da música ocidental...
ResponderExcluirBela homenagem a José Mário e um modo primoroso de dar a largada, no blog, aos festejos do ano Beethoven.
Obrigado pela indicação do disco de Tharaud.
Obrigado a você, pelo comentário. (Quem é você?)
ExcluirSou um leitor frequente do blog, André, que conheci após veemente recomendação de Sérgio. Abraços.
ExcluirAgora me lembrei! Por favor, me mande seu e-mail. Abraço.
ExcluirVou enviar um e-mail a você, André. Abraços.
ExcluirUm P.S.: Fiquei tão envolvido pelo tom memorialísta que só agora me dei conta que se trata de um microconto. A homenagem, na verdade, é mesmo ao gênio de Beethoven.
ResponderExcluirÉ só isso mesmo, Emerson, homenagem ao gênio!
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