terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A barra mais pesada que tiveram


Seis horas e trinta e quatro minutos.  O despertador avisava pela terceira vez.  Os postes do início da W3 ainda acesos. Os ônibus começavam a chegar ao centro da capital. Faltava menos de meia hora para o início do plantão. Melhor levantar. Empurrou o marido da cama, tomou um banho rápido, deu beijinhos nos gêmeos e desceu as escadas do segundo andar mastigando um pão de queijo dormido. Arrumou os cabelos enquanto caminhava em direção ao Hospital de Base. O plantão de domingo nunca era tranqüilo. Os exageros do final de semana lotavam as macas do pronto socorro. 
            Estava no quinto e último ano de residência em neurologia. Foram anos de muito trabalho. Conciliar as tarefas de mãe com a formação médica era quase impossível. A maioria interrompia a carreira por algum tempo. Mônica não teve essa opção. Sua mãe nunca concordou com o seu casamento. Não ajudava. Não foram raras as vezes em que o marido teve que levar os bebês para serem amamentados no hospital. 
Apesar disso, a jovem era querida e elogiada. Médicos, enfermeiras e auxiliares ficavam impressionados com o seu comprometimento. Escolheu uma especialidade difícil. A angústia de pacientes inconformados por incertezas e sequelas neurológicas sem poder oferecer grandes esperanças endurecia o coração da maioria dos médicos da área. Mônica sabia manter o otimismo e conseguia confortá-los da melhor maneira. Sentia falta de tempo para meditação e para os filmes do Godard. Em breve tudo melhoraria, pensava.
A família era valente. Trocaram a moto e o “camelo” por uma espaçosa Caravan 78, cor-de-abóbora. Iam ao parquinho do foguete, ao Nicolândia, ao Jardim Botânico e até a Alto Paraíso. Eduardo não era mais “o boyzinho das aulinhas de inglês”. Além do leva-e-traz diário com as crianças, intercalava o trabalho em um posto gasolina do setor hoteleiro sul com o curso de Processamento de Dados na UnB. Seu rendimento melhorou um pouco, mas perdia pelo menos uma matéria por semestre. Prometeu a Mônica que terminaria o curso. Melhor cumprir. 
O pai ainda dormia no tapete ao lado da cama, quando a pequena Bia foi lhe pedir o café da manhã. Abraçou a filha e depois de muitos beijos, cócegas e gargalhadas resolveu fazer o que ela queria. Melhor não abusar. Leozinho acordou mal humorado duas horas mais tarde perguntando pela mãe. Tinha pesadelos. Eduardo prometeu levá-los ao clube. As crianças completaram quatro anos e aquela quitinete diminuía de tamanho a cada dia. No próximo ano, a casa no condomínio irregular próximo a Sobradinho estaria pronta. 
Os três chegaram ao clube após o meio-dia. O sol e a secura do agosto brasiliense não impediram horas de futebol, pique-pega e piscina. Interromperam para o almoço. Bia estava com fome. Desceram para a churrasqueira mais próxima do lago. Aproveitaram a ausência da mãe para se fartarem de pão com linguiça, catchup, fanta uva e chicabom. Exaustos, dormiram no gramado embaixo das árvores. A partir daí as lembranças ficariam menos nítidas. Melhor esquecer.
Os gritos aflitos de uma mãe acordaram Eduardo. Ela dizia ter visto uma criança desaparecer no lago. Ele e dois outros homens passaram a garimpar as águas turvas no local indicado, metro por metro. Minutos preciosos foram se perdendo. Quando todos pensavam em desistir, inexplicavelmente, Eduardo decidiu caminhar em direção ao fundo. Sentiu perna tocar no corpo. Melhor correr.
Retirou a criança e a levou rapidamente para margem. Somente quando iniciou as manobras de reanimação, ensinadas pela esposa, percebeu que a vítima era o seu próprio filho. Minutos inomináveis se passaram até a chegada da ambulância. O pequeno Léo foi levado ao Hospital de Base em estado crítico.
Horas, dias e semanas de angústia e incerteza. Medo. O menino permanecia no coma em prognóstico sombrio. Ninguém arrancava Mônica da beira do leito. Seu estado depressivo preocupava. A esperança se esvaia. Impossível saber como a criança acordaria. Melhor não pensar. 
Eduardo abandonou o trabalho e a universidade. Não lembrava onde estava quando as tartaruguinhas atraíram o filho para o fundo do lago. Porém, daria tudo para conseguir esquecer o que ocorreu em seguida. Voltar no tempo. Não ter saído de casa. Não ter pegado no sono. Melhor não existir.
Bia já não perguntava pelo irmão.
– Moniquinha! Moniquinha! Acorda, menina! Tem paciente pra você no box da neuro. Calma! Já vi que não é nada grave – gritou baixinho, a experiente enfermeira, bem próximo a cama da sua residente preferida, no repouso das médicas. Inês sabia como acordar um médico sem assustá-lo, quando queria. 
Pouco adiantou. Mônica se levantou atordoada por uma sensação que ainda não conseguia compreender. Vestiu o jaleco. Cinco horas e 16 minutos. A segunda-feira, enfim, amanhecia. Caminhou pelo silêncio e pelo vazio, no corredor de acesso ao pronto-socorro. Não arrumou os cabelos. Atendeu a paciente rapidamente. Terminou o plantão. A residência terminaria depois. Precisava voltar para casa.
Melhor assim.

         Moisés Lobo Furtado                               21/11/2019

Um comentário:

  1. Tem ritmo, emoção contida, prosa de martelo batendo sem parar. Atordoamento que o leitor sente junto. Muito bom!

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