O caso que passo a relatar me foi contado por pessoa idônea, cirurgião de afamada reputação na capital e em todo o estado; à época do sucedido ele estudava medicina em Salvador, na Baía de Todos os Santos, no auge do anos 60. Merece crédito.
Consta que Iolanda, linda ainda nos seus 30 anos, mulher fogosa, farta de peitos, casada com advogado famoso e endinheirado, procurou o consultório do doutor R, queixando-se de fortes dores no peito, aflição e tristeza. Foi examinada minuciosamente pelo médico – como era praxe nos tempos de antigamente –, que formulou mais uma ou duas perguntas sobre a vida íntima de Iolanda, sentou-se à mesa do consultório e efetuou, sem titubear, a prescrição.
A verdade é que o drama de Iolanda nem o melhor médico do mundo poderia curar, e o doutor R sabia disso. Mãe de dois filhos adolescentes, Iolanda estava apaixonada pelo melhor amigo do marido. R era amigo de ambos, do amante e do marido traído, e se preocupava com a situação, temeroso de violento desfecho, maneira pela qual se resolviam casos como aquele na região.
Ao final da consulta, R entregou bilhete a Iolanda, convidando toda a família para a festa de aniversário dele, que ocorreria em uma semana, quando completaria 60 anos. Iolanda voltou para casa mais aliviada, depois da conversa com aquele grande médico, humano, que sabia ouvir seus pacientes, amor de pessoa no dizer de Iolanda.
Logo que chegou em casa chamou pela empregada, moça de 15 anos, mulata sestrosa, bonita de rosto e de corpo já formado, Neguinha, pegue a receita do doutor R na minha bolsa e corre na farmácia do doutor Osório e pede para ele aviar esta receita com urgência! Vá num pé e volte no outro! Neguinha pegou a receita e saiu voando.
Doutor Osório era farmacêutico experiente, radicado na cidade para mais de 30 anos. Gabava-se de ser capaz de decifrar em minutos a letra de qualquer médico do Brasil! Pois ao abrir a receita assinada pelo doutor R, embasbacou-se, andou de Herodes a Pilatos, engasgou tossiu faltou-lhe o ar, pasmo desnorteado diante daqueles garranchos que não faziam sentido, lia relia trelia e nada, reconhecia apenas a assinatura do doutor. Osório despachou Neguinha, Vá-se embora, assim que os remédios ficarem prontos mando entregar em casa de Dona Iolanda. E voltou à receita.
Santo deus! – vê-se que Osório não cria –, será esta a primeira vez que não consigo decifrar a merda de uma receita? Eu tenho um nome a zelar, fiquem sabendo os moradores da Baía de Todos os Santos! Uma vida inteiramente dedicada à Pharmácia, isso mesmo, com PH, e que jamais será manchada pelos garranchos de um doutorzinho filho da puta! E Osório aviou a receita, mandou entregar como combinado.
Iolanda iniciou de pronto o tratamento. Melhorou logo com as primeiras doses de ambos os remédios, 30 gotas de um, uma colher das de chá diluída em água filtrada, o outro. Doutor Osório era mesmo um santo!
Às vésperas da festa de aniversário de R, Iolanda teve uma recaída. Tinha medo de lá encontrar o amante na presença do marido, que, a bem da verdade, de nada suspeitava. Não teve dúvida: pediu ao farmacêutico que aviasse uma segunda remessa dos remédios, e assim foi feito. A melhora veio quase que imediata, verdadeiro milagre, proclamava Iolanda. Agora ela estava pronta para a festa.
Foi um dia agitado; os preparativos envolviam todos os membros da família e agregados; os melhores trajes foram retirados dos guarda-roupas, escovados e passados a ferro; Iolanda passou a manhã na cabeleireira; F, o marido traído, apenas lamentava ter que usar terno e colete no escaldante calor da Bahia, mas R era seu amigo, faria aquele sacrifício. Na hora da partida, Iolanda não se esqueceu do convite, ainda na bolsa que havia levado ao médico.
A mansão do doutor R, de estilo colonial, ocupava um quarteirão inteiro de bairro nobre de Salvador. Durante o dia havia guardas em posições estratégicas em volta do terreno. À noite, três rottweilers e um dobermann se encarregavam da vigilância. R era cuidadoso com a proteção da casa e da família, e por causa disso, no dia da festa colocou dois seguranças na entrada, com ordem expressa de que só seriam admitidos aqueles que mostrassem o convite, com a respectiva assinatura do doutor.
Iolanda, o marido e os dois filhos, ao chegarem à mansão de R, causaram alvoroço na plateia que se juntara em volta do portão de entrada, gente pobre e provavelmente com fome, que desejava apenas apreciar o espetáculo da chegada de gente abastada e bem vestida. (Faltava apenas o tapete vermelho.) Solicitado o convite, Iolanda prontamente o entregou. O guarda encarregado não era um analfabeto, era homem ladino, de confiança do doutor, e diante da surpresa, releu o convite, mostrou ao ajudante, ambos perplexos e, pior, desconfiados. O que tinham nas mãos era uma receita médica, dava para ler a palavra Passiflorine, tranquilizante natural, leve, muito usado na época.
– Sinto muito, senhora, mas não podem entrar.
– Como assim, seu guarda? Veja a assinatura do doutor!
– De fato, mas trata-se apenas de uma receita médica e não de um convite para a festa. Sinto muito.
– O senhor faça o favor de chamar imediatamente o doutor R!
– Sinto, senhora, mas não posso arredar pé aqui do portão, são ordens do doutor.
Diante do burburinho da assistência alvoroçada, o marido traído manifestou-se pela primeira vez:
– Então vão todos às putas que os pariu. Pra casa, Iolanda!
Humilhação maior, impossível. Já em casa, depois de um copo d’água com açúcar, Iolanda foi ler com cuidado o convite: era mesmo uma receita. Então que diabos o farmacêutico aviou? Chamou o motorista da família e rumou em direção à residência do doutor Osório. Era domingo, a farmácia estaria fechada, mas o farmacêutico devia a ela uma explicação.
Osório tomou conhecimento do desagradável ocorrido e ao se deparar com a receita original e compará-la com o convite ficou lívido, gaguejou, não tinha explicação para o fenômeno. Fenômeno? esbravejou Iolanda; ela exigia retratação aos berros, ameaçava processar o farmacêutico, que um pouco mais calmo, se deu conta do engano: por isso ele não conseguia decifrar a prescrição do doutor R, não era uma receita, era um convite para uma festa. Osório, homem experiente, se recompôs e tratou de por ordem na casa:
– Dona Iolanda, a senhora não se sentiu melhor depois dos medicamentos que aviei? Tanto que me pediu uma segunda remessa!
Iolanda calou-se, o farmacêutico tinha razão. De fato, as formulações do doutor Osório foram milagrosas. Ela resolveu reconsiderar.
– Mas o senhor então me explique como pôde preparar os remédios, sem a receita original do doutor R!
– Foi a mão de Nossa Senhora da Conceição, dona Iolanda. Não é a primeira vez que isso me acontece. A senhora recebeu uma graça da Santa e ficou curada. Agradeça a ela.
Iolanda voltou para casa pensativa. Talvez tivesse sido melhor assim. Talvez tenha sido um aviso, para que ela deixasse de pecar. Deus escreve certo por linhas tortas.
Osório, por sua vez, preparou dose dupla de uísque com duas pedras de gelo, deitou-se na rede da varanda, e matutou por várias horas. Ele havia preparado Elixir paregórico – 30 gotas 3 vezes ao dia, e Bicarbonato de sódio a 2% – uma colherinha após as refeições. E concluiu:
– Essa Nossa Senhora da Conceição é mesmo porreta!
FIM
Que maravilha, André! A estória me prendeu desde o início. Fluida, dinâmica, muito agradável. Juro que cheguei a esperar a assinatura de algum escritor famoso que voce estivesse homenageando. Fiquei muito orgulhoso ao saber que o autor é meu amigo.
ResponderExcluirObrigado, meu amigo!
ResponderExcluirUm primor de conto! Pura literatura!
ResponderExcluirVocê é suspeito...
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