Antonio Peticov, serigrafia
O megacronista que escreve para o hiperjornal dominical não encontra assunto na tarde de sábado, véspera da publicação, para a crônica do dia seguinte. Lê e relê os jornais, encontra apenas mediocridade, burrice, falta de imaginação, mau gosto, e ele precisa escrever a bendita crônica.
Ele pede socorro às manchetes porque está seco de ideias. Sabe isso? seco de ideias? cabeça vazia? nada nada nada vem ao bestunto, se recusa a apelar para as bolsonarites que abundam na mídia, não deseja repetir o erro de seus colegas cronistas que caem na armadilha e respondem às canalhices, aos destemperos, à insanidade geral, ele deseja preservar a lucidez, escrever algo que importe de fato a seus leitores.
Terraplanistas? O que escrever sobre eles quando comemoramos 500 anos da circum-navegação da Terra por Fernão de Magalhães e Elcano iniciada em setembro de 1519? (Talvez escreva sobre Elcano, mas quem haverá de ler?) Desde então já se sabia que a terra era redonda! Há 500 anos!
Atacar os criacionistas do prefeito, para quê? Fundamentalistas não mudam de opinião, sejam do Boko Haram ou de qualquer outra seita. Melhor deixá-los na santa paz da ignorância.
Falar mal de políticos perdeu a graça; uns poucos estão na cadeia, para servir de exemplo; adianta? Outro dia recebi interessante mensagem de autor desconhecido: “Aplaudir político por fazer obra com o dinheiro público é o mesmo que aplaudir caixa eletrônico por entregar nosso próprio dinheiro!” Pior é aplaudir o discurso demagógico e mentiroso de certos políticos. Não, ele não escreveria sobre a política suja.
Mas ele precisa escrever e a cabeça permanece vazia.
Futebol? Como escrever sobre futebol com o Corinthians jogando desse jeito? A Seleção patinando patinando patinando a ponto de perder para o Peru. Fora Tite, alguns já começam a gritar. Neymar? Quem é Neymar? Agora, Federer e Touro Miura todo mundo conhece.
A cabeça oca de tudo, resolve deixar o computador no modo repouso e ir à praia. Lá certamente encontraria assunto para escrever sua crônica obrigatória. Praia é uma festa, ele pensa.
O cronista atravessa dois quarteirões e está na praia. Para enorme espanto seu, a praia está deserta, completamente deserta, não há alma viva no raio de dez quilômetros, nada de sorveteiros vendedores de chapéu brinco rede tatoo empada suco água-mineral refrigerante cerveja rede cachorro-quente quibe rede esfirra biquíni saída-de-praia rede melancia-em-fatias camarão-frito nem um simples baseado poderia comprar nem rede nada de peitos e bundas. Completamente vazia, como a cabeça dele.
Então se lembra do tal promotor que reclama do salário de R$ 24 mil e vive no “miserê”; procurado pela imprensa, o magistrado informa que se afastou por razões de saúde.
Em vez da crônica, entregou ao jornal um atestado médico. Falso, naturalmente.
Ótimo texto. Desalento perfeitamente expresso!
ResponderExcluirSó faltou um tango argentino...
Excelente, André. Essa crônica é mais uma prova que más noticias ou mesmo o vazio de notícias é uma grande fonte de inspiração.
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