segunda-feira, 23 de julho de 2018

In-felicidade


O prolífico Drauzio Varella, por quem nutro grande admiração, quase sempre ocupado com temas ligados à saúde e à pesquisa científica, nos surpreende ao escrever sobre a Felicidade, em crônica dominical para a Folha de S. Paulo (22 jul 2018). E escreve em grande estilo:

“Felicidade plena, mesmo, só no conforto protegido do ventre materno. Lá, a sobrevivência está à mercê exclusiva da fisiologia, não há encruzilhadas, armadilhas nem espaço para dúvidas que nos levem à angústia das escolhas.
A plenitude chega ao fim em nove meses. Os religiosos que me perdoem, mas o paraíso com serpentes e frutos proibidos do qual Adão e Eva foram expulsos por graça do pecado original é um mundo inóspito se comparado aos ditames da vida intrauterina.
Para destruir a convivência idílica com o organismo materno, são necessárias contrações uterinas tão brutais que chegamos à luz aos berros, prenúncio do que está por vir.”

            É possível que haja felicidade na vida pré-natal. Entretanto, serão tão primitivos os sentimentos vividos pelo feto que dificilmente poderíamos compará-los àquilo que denominamos felicidade diante do mundo real. A própria consciência (parece que está mesmo presente intra-útero) há de ser primitiva, ainda em formação, em paralelo ao desenvolvimento do sistema nervoso central. Assim, penso que a “felicidade plena” no ventre materno de que fala Varella é muito mais uma romântica figura de linguagem, bem longe da realidade. Se ela existe mesmo, não temos consciência dela depois que nascemos. 
            Porém, a “destruição da convivência idílica” de que trata o cronista, no momento do parto – súbita brusca violenta separação – esta existe mesmo, trauma que fica para sempre, momento de intensa in-felicidade. Se não é a única responsável por nossa eterna busca, esta brutal separação, como diz Varella, contribui em muito para a chamada “angústia existencial” de que tanto se fala. Prefiro chamá-la apenas de FALTA, uma falta que permanece por toda a vida, sem que saibamos (ou tenhamos plena consciência) do que sentimos falta! 
            Sentir plenamente a falta – em vez de negá-la –, aprender a sofrer a dor da falta, ter consciência dela, pode nos ajudar a suportá-la. (O processo psicanalítico nos ajuda a tornar consciente aquilo que é inconsciente.)
            Nada disso nos impede de usufruir de momentos de felicidade, como o nascimento de um filho, de um neto, uma viagem interessante, a audição da Nona de Beethoven, visitar um belo museu, vencer a Copa do Mundo, vibrar com um gol de nosso time preferido. (Inútil classificar os momentos de felicidade em ordem de grandeza ou intensidade: o que conta é o que sentimos naquele determinado momento.)
            A vida é mesmo feita de perdas, a começar pelo nascimento. Reconhecer os momentos de felicidade e vivenciá-los da melhor forma possível, eis a arte de sobreviver.
            Até que nada disso faça mais sentido, quando a vida perde a graça e perdemos a vontade de viver. Alongar, com o passar dos anos, por um bom tempo, o aparecimento deste estado de espírito, então talvez seja possível continuar pensando em felicidade.







Um comentário:

  1. Atribui-se à atriz Tonia Carrero a seguinte frase, quando lhe perguntaram se era feliz: "Sim sou feliz. Várias vezes ao dia."

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