domingo, 28 de outubro de 2018

Treinar para ouvir




Ao folhear o jornal de sábado, atormentado com tantas e tão disparatadas notícias da política nacional, uma certa manchete despertou-me curiosidade, publicada na sessão Saúde da Folha de S. Paulo (26 out 2018), reportagem de Cláudia Collucci:

“Treinar médicos para ouvir pode reduzir ansiedade e depressão na população.”

            Minha primeira impressão , antes mesmo de ler a matéria, foi a de que se tratava de mais uma crítica aos médicos, que cada vez ouvem menos seus pacientes. A recomendação pareceu-me apropriada, na era do prontuário eletrônico, o paciente escondido atrás da tela do computador. Há muito que a chamada relação médico-paciente vem se deteriorando; há publicações em revistas médicas de peso chamando a atenção para o problema; e um dos problemas é mesmo a dificuldade do médico para ouvir seu paciente.
            Enganei-me, não era este o enfoque. A reportagem traz interessante proposta para o tratamento de pessoas que necessitam atendimento psiquiátrico, em países onde o número desses especialistas é reduzidíssimo. (No Zimbábue há dez psiquiatras para uma população de 13 milhões de pessoas.)
            Diz a reportagem: “O treinamento de profissionais da atenção primária, como médicos de família e enfermeiros, combinado com iniciativas que envolvam a comunidade pode ser o caminho para aumentar a oferta de tratamento de transtornos mentais como a depressão e a ansiedade.”
Quem faz tal afirmação é o psiquiatra Shekhar Saxena, 62, professor do departamento de saúde global de Harvard e ex-diretor de saúde mental da OMS.
Saxena é um dos autores de recente relatório publicado na revistaThe Lancet, com  severas críticas aos tratamentos de saúde mental e subfinanciamento por parte dos governos.
Vem ganhando apoio internacional o “friendship bench” (banco da amizade, numa tradução livre), desenvolvido pelo professor Dixon Chibanda, da Universidade do Zimbábue. “Chibanda treinou avós para ouvir e orientar pessoas com depressão e ansiedade. Um estudo publicado no Jama(Jornal da Associação Médica Americana) mostrou que aqueles que sentaram no banco e contaram seus problemas para as avós tiveram maior redução de sintomas da depressão e da ansiedade do que aqueles que não tiveram essa escuta.”
Os bancos foram inicialmente testados no Zimbábue e atualmente estão sendo usados no Malaui, em Zanzibar e até em Nova York, em bairros como Bronx e Harlem. 
            Relata ainda a reportagem: “A atenção primária varia muito de país para país. Em alguns, os serviços são gerenciados por médicos e enfermeiros, em outros por mais profissionais da saúde. Todos podem ajudar, mas de diferentes maneiras. Médicos e enfermeiras podem ser treinados para identificar e tratar pessoas com as desordens mentais mais comuns como depressão, ansiedade e problemas com álcool e drogas. Eles podem ajudar de 60% a 70% das pessoas. Algumas vão precisar ser encaminhadas a um especialista, mas será a minoria. A maioria pode ser cuidada em uma atenção primária bem treinada.”
            A proposta, na realidade, chama nossa atenção para as relações interpessoais, algo que está acima da relação médico-paciente. Não há nada a nos surpreender, pois a ação terapêutica de uma conversa bem dirigida (pessoas treinadas para ouvir) há muito está estabelecida. A questão se resume em saber ouvir, esta a grande dificuldade do ser humano.



3 comentários:

  1. Bela postagem André e abre uma maneira alternativa de diminuir as sobrecargas afetivas. Lembrei do CVV , pessoas leigas treinadas para ouvir e tentar com isso evitar um suicídio. Esses cuidados podem não serem os melhores mas é o que é possível ser feito e com resultados!

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  2. Muito pertinente. Solidariedade na escuta do outro. Faria bem a muita gente. Se calhar, mais que o psicotrópico mal indicado numa consulta corrida.

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