quarta-feira, 28 de março de 2018

Lucia Berlin ensina



Não costumo ganhar livros de presente, Você já tem tudo, é o que dizem meus amigos em épocas de aniversário e Natal, porém com o faro de quem me conhece, Sergio me agraciou com o Manual da Faxineira – contos escolhidos, de Lucia Berlin (Companhia das Letras, 2017). No alto da capa, o selo de mau gosto: “Eleito um dos 10 melhores livros do ano pelo New York Times”.
            Em minha santa ignorância, jamais ouvira falar em Lucia Berlin. Agora estou sabendo que ela nasceu no Alasca (também não sabia que nascia gente no Alasca), em 1936, e que publicou em vida 76 contos, ganhadora de vários prêmios, incluindo o American Book Award em 1991. Berlin morreu em 2004, na Califórnia.
            É com enorme curiosidade que inicio a leitura do primeiro conto do Manual da faxineira, intitulado Lavanderia Angel`s. A narradora está sentada em uma lavanderia e enquanto aguarda a lavagem observa o índio velho de longos cabelos brancos amarrados num rabo de cavalo também lavando roupa, o movimento das roupas dentro das máquinas, os cartazes pregados nas paredes com dizeres diversos, “PASSAR A FERRO $1,50 A DÚZ”, o chão sempre molhado da água que escorre das máquinas, “NÃO SOBRECARREGUE AS MÁQUINAS”, e de repente ela vê o que descreve como “uma oração de serenidade em laranja fosforescente”:

“CONCEDEI-ME, SENHOR, SERENIDADE PARA ACEITAR AS COISAS QUE NÃO POSSO MUDAR.”

            Encerro por aqui a descrição do ótimo conto de Lucia Berlin (volto ao livro oportunamente) para tratar da frase tão fosforescente que prendeu minha atenção, também em maiúsculas no original.
            A frase sugere mesmo uma oração. “Concedei-me, Senhor” é expressão de súplica religiosa, e “Senhor”, provavelmente, é ninguém menos que Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela foi escrita por uma pessoa religiosa e endereçada àqueles que creem.
            Como estou entre os que não creem, automaticamente suprimi aquela introdução e li com enorme interesse a segunda parte do período: “serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar”.
            Resolvi recompor todo o período segundo meu modo de pensar, que ficou assim:

QUE EU POSSA TER SERENIDADE PARA ACEITAR AS COISAS QUE NÃO POSSO MUDAR.

            Para mim, trata-se de grande ensinamento, fundamental para enfrentar essa nossa vida repleta de frustrações, do nascimento até a morte. A frase me tocou profundamente porque eu não tenho esta serenidade para aceitar o que não posso mudar. A frustração me irrita, me causa ódio.
            Então, qual a diferença entre as duas leituras, a religiosa e a não-religiosa, se a serenidade almejada está presente em ambas?
            A diferença reside no fato de que, quem diz “concedei-me”, espera que que a graça venha do alto, como um presente dos céus. Quem pronuncia “que eu possa ter” sabe que nada vem de graça, que não adianta pedir, pois sou eu que preciso trabalhar para consegui-lo, que a tal serenidade, se vier, só poderá vir de dentro de mim, nunca de fora. E se vier, não surgirá de repente, como uma revelação; serão precisos anos de experiência, toda uma vida de autoaprendizado, tentativas permanentes de autoconhecimento (a Psicanálise pode ajudar), de enfrentamentos das sucessivas perdas, para, quem sabe, atingir o que poderíamos chamar de sabedoria, capaz de gerar serenidade.
De qualquer modo, a frase fosforescente de Lucia Berlin, pretensamente escrita numa parede de lavanderia, me fez pensar. Este o grande benefício da Literatura!


            

4 comentários:

  1. Bela reflexão!
    Seria possível, também, a seguinte oração:
    “Concedei-me (força e determinação para, por meu próprio esforço, alcançar) serenidade para aceitar o que não posso mudar.”
    PSV

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tudo bem, mas "concedei-me força e determinação", a força e a determinação virão de fora. Também é uma súplica.

      Excluir
  2. Difícil presentear mas quando acerto é para sempre como o livro de como fazer pipas Thiago Mello. Quantas vezes já não pensei que os detalhes que você encontra em textos passariam despercebidos em minha leitura . Esse detalhe vira uma crônica maravilhosa . Parabéns.

    ResponderExcluir