Não costumo ganhar
livros de presente, Você já tem tudo, é o que dizem meus amigos em épocas de
aniversário e Natal, porém com o faro de quem me conhece, Sergio me agraciou
com o Manual da Faxineira – contos escolhidos,
de Lucia Berlin (Companhia das Letras, 2017). No alto da capa, o selo de mau
gosto: “Eleito um dos 10 melhores livros
do ano pelo New York Times”.
Em minha santa ignorância, jamais ouvira falar em Lucia
Berlin. Agora estou sabendo que ela nasceu no Alasca (também não sabia que nascia
gente no Alasca), em 1936, e que publicou em vida 76 contos, ganhadora de
vários prêmios, incluindo o American Book
Award em 1991. Berlin morreu em 2004, na Califórnia.
É com enorme curiosidade que inicio a leitura do primeiro
conto do Manual da faxineira,
intitulado Lavanderia Angel`s. A
narradora está sentada em uma lavanderia e enquanto aguarda a lavagem observa o
índio velho de longos cabelos brancos amarrados num rabo de cavalo também
lavando roupa, o movimento das roupas dentro das máquinas, os cartazes pregados
nas paredes com dizeres diversos, “PASSAR A FERRO $1,50 A DÚZ”, o chão sempre
molhado da água que escorre das máquinas, “NÃO SOBRECARREGUE AS MÁQUINAS”, e de
repente ela vê o que descreve como “uma oração de serenidade em laranja fosforescente”:
“CONCEDEI-ME,
SENHOR, SERENIDADE PARA ACEITAR AS COISAS QUE NÃO POSSO MUDAR.”
Encerro por aqui a descrição do ótimo conto de Lucia
Berlin (volto ao livro oportunamente) para tratar da frase tão fosforescente que prendeu minha atenção, também
em maiúsculas no original.
A frase sugere mesmo uma oração. “Concedei-me, Senhor” é
expressão de súplica religiosa, e “Senhor”, provavelmente, é ninguém menos que Nosso
Senhor Jesus Cristo. Ela foi escrita por uma pessoa religiosa e endereçada àqueles
que creem.
Como estou entre os que não creem, automaticamente
suprimi aquela introdução e li com enorme interesse a segunda parte do período:
“serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar”.
Resolvi recompor todo o período segundo meu modo de
pensar, que ficou assim:
QUE EU POSSA TER SERENIDADE
PARA ACEITAR AS COISAS QUE NÃO POSSO MUDAR.
Para mim, trata-se de grande ensinamento, fundamental
para enfrentar essa nossa vida repleta de frustrações, do nascimento até a
morte. A frase me tocou profundamente porque eu não tenho esta serenidade para
aceitar o que não posso mudar. A frustração me irrita, me causa ódio.
Então, qual a diferença entre as duas leituras, a
religiosa e a não-religiosa, se a serenidade almejada está presente em ambas?
A diferença reside no fato de que, quem diz “concedei-me”, espera que que a graça
venha do alto, como um presente dos céus. Quem pronuncia “que eu possa ter” sabe que nada vem de graça, que não adianta
pedir, pois sou eu que preciso trabalhar para consegui-lo, que a tal serenidade,
se vier, só poderá vir de dentro de mim, nunca de fora. E se vier, não surgirá
de repente, como uma revelação; serão precisos anos de experiência, toda uma
vida de autoaprendizado, tentativas permanentes de autoconhecimento (a Psicanálise
pode ajudar), de enfrentamentos das sucessivas perdas, para, quem sabe, atingir
o que poderíamos chamar de sabedoria, capaz de gerar serenidade.
De qualquer modo,
a frase fosforescente de Lucia Berlin, pretensamente escrita numa parede de
lavanderia, me fez pensar. Este o grande benefício da Literatura!
Bela reflexão!
ResponderExcluirSeria possível, também, a seguinte oração:
“Concedei-me (força e determinação para, por meu próprio esforço, alcançar) serenidade para aceitar o que não posso mudar.”
PSV
Tudo bem, mas "concedei-me força e determinação", a força e a determinação virão de fora. Também é uma súplica.
ExcluirDifícil presentear mas quando acerto é para sempre como o livro de como fazer pipas Thiago Mello. Quantas vezes já não pensei que os detalhes que você encontra em textos passariam despercebidos em minha leitura . Esse detalhe vira uma crônica maravilhosa . Parabéns.
ResponderExcluirSão como nossa amizade, os presentes!
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