quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Conto de Natal em 2017



            Fernandão 348 foi preso às vésperas do Natal, após exaustiva blitz das polícias estadual e federal e das Forças Armadas, num esforço sobre-humano para capturar aquele que era considerado o bandido mais perigoso da cidade, quiçá do país, chefão do tráfico de drogas e armas na maior favela do mundo. Foi trancafiado, afinal.
            A favela entrou em luto fechado. Havia gente chorando pelos cantos, gritos de lamentação, a tristeza era geral, pois com a prisão de Fernandão 348 não haveria distribuição de panetones naquele Natal! A criançada da favela tampouco ganharia brinquedos, bolas, carrinhos de todos os tipos e tamanhos, bonecas de todos os tipos e tamanhos, bichos de pelúcia coloridos, ursinhos, cachorrinhos, vaquinhas, boizinhos, monstrinhos – os prediletos das crianças, na favela ou no asfalto – panelinhas e objetos de cozinha de todos os tipos e tamanhos para as meninas, uniformes de futebol para os meninos, que na favela as crianças ainda são divididas em meninos e meninas. Enfim, não haveria Natal na favela.
            Até mesmo os policiais que davam plantão no local não escondiam seu desapontamento; eles sempre estavam incluídos na lista dos presenteados.
            Alguma coisa precisava ser feita.
            Libertar Fernandão 348 da prisão de segurança máxima onde se encontrava era missão impossível, até mesmo com a possível interferência do ministro da justiça, pois aquela prisão havia se tornado ato político emblemático para a corporação. Alguém sugeriu pagar propina para o secretário de segurança do estado ou até mesmo para o governador, visando a soltura do homem. A ideia não prosperou, impossível arrecadar a dinheirama necessária em tão pouco tempo. Apelar para o supremo talvez fosse a solução, mas havia o tal recesso.
            Foi Carminha, menina de 9 anos, nascida na favela, quem apresentou a ideia mais criativa, surpreendente mesmo, tão original que até desse o resultado almejado: escrever uma cartinha ao próprio Fernandão 348, pedindo providências. Ela mesma, Carminha, se encarregaria da missão, desinibida, atrevida como sempre.
            Sentou-se em sua cama, no barraco de sua mãe, e escreveu:



Rio de janeiro, 15 de dezembro de 2017.

Querido e estimado
Senhor Fernandão 348

Eu me chamo Carminha, tenho 9 anos e moro na sua favela. Foi minha a ideia de lhe escrever esta cartinha, primeiro porque precisamos tratar do assunto dos presentes de Natal, e segundo porque eu gosto muito de escrever cartas, apreciadas pela minha professora, por minha mãe, que pai não conheço, até pelos meus colegas, alguns admiradores, outros invejosos, mas eu não ligo para o que eles pensam, eu gosto mesmo é de escrever, também escrevo histórias, Senhor Fernandão 348, depois posso lhe mostrar algumas, pois acho que o senhor terá tempo de sobra para ler aí onde se encontra.
            Mas vamos tratar do assunto principal, os presentes de Natal. A favela toda está muito preocupada. Dizem que não haverá presentes porque Papai Noel está preso (brincadeirinha minha, não fique zangado, Deus me livre disso). É por isso que lhe escrevo, para pedir que envie por alguém a ordem para seu Substituto, que não vou citar o nome aqui porque pode ser perigoso, para que ele faça a distribuição dos presentes, principalmente os brinquedos para as criancinhas.
            Desculpe meu atrevimento por tratar desse assunto, mas o senhor deve saber onde está o dinheiro para as compras de Natal, de modo que também mande avisar o Senhor Substituto sobre isso.
            Minha mãe me disse que a maneira mais segura para o senhor dar a ordem e tudo mais é através de seu advogado, o doutor Cacau, que além de ser o portador desta cartinha, poderá trazer o recado em segurança, pois conforme minha mãe me informou, ele é homem de confiança seu e do Senhor Substituto. (Desculpe outra vez, ficar repetindo Senhor Substituto pra cá, Senhor Substituto pra lá, mas se houver qualquer dúvida sobre quem seja ele, seu nome verdadeiro, o Senhor também pode enviar a nomeação pelo doutor Cacau, porque isso é muito importante para que alguém compre os presentes.)
            Mas, Senhor Fernandão 348, isso precisa ser feito loguinho mesmo, ou não teremos tempo para fazer todas as compras, inclusive os panetones que eu ia me esquecendo de falar.
            Então é isso. Espero que esta lhe encontre com saúde e na Santa Paz de Deus.
            Com a amizade de sua admiradora, desde já agradecida,

                                                                                  Carminha.

PS: Se o senhor desejar, posso lhe enviar minhas histórias pelo doutor Cacau, com muito gosto de minha parte. Espero que aprecie.


            A cartinha chegou a tempo às mãos de Fernandão 348!


FIM


Nota do autor

            As lembranças de meu pai são muito fortes nos meses de dezembro, mês em que ele morreu, há 20 anos. Perto do Natal ressurge a história mil vezes contada em família, sempre motivo de graça e riso.
            Em um certo ano, o pai reuniu filhos, noras, netos, alguns mais próximos, e fez a proposta do concurso: que cada um escrevesse um Conto de Natal, e ele haveria de escolher o vencedor.
            A reação dos ouvintes foi inexpressiva, xoxa, insossa, nenhuma empolgação diante do desafio, para tristeza do pai. Passou o Natal e ninguém escreveu conto algum.
            Desde então, vez em quando, no mês de dezembro, escrevo meu Conto de Natal, em homenagem ao pai, porém duvidando que ele apreciasse meus heréticos escritos, logo no Natal.
            Entretanto, espero que os poucos leitores deste blog o apreciem. (Ao menos ficam conhecendo Carminha, que me autorizou, naturalmente, a publicação de sua cartinha.)


            

Um comentário:

  1. Magistral conto natalino! A desmontar nossas celebrações tristemente ingênuas.

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