Ao meu irmão
Paulo.
Não
conheço o homem mas sei que ele existe. Sei que ele reside numa pequena cidade
do interior de São Paulo, onde há boa qualidade de vida e sossego suficiente
para que se possa desenvolver o Projeto.
Para
tornar mais fácil minha função de narrador, passo a chamá-lo João. Pois João
gosta das palavras, sempre gostou, como tantos de nós. Desnecessário dizer que
se trata de um leitor compulsivo, hábito adquirido na infância e aprimorado com
a ajuda da boa biblioteca municipal da cidade. Desde logo João desenvolveu
leitura fluente em francês e inglês; moço dado a façanhas, devorou os sete
volumes de Em busca do tempo perdido, no original. Porém, a vida dele mudou
mesmo quando foi apresentado ao Esperanto.
Como todo bom
Esperantista, João é um idealista. Não perde um congresso nacional ou
internacional de Esperanto, corresponde-se com meio mundo – melhor dizer, com o
mundo inteiro! –, tem amigos na Suécia, na Coreia do Sul, na Austrália, em toda
a África. Tornou-se um especialista, respeitadíssimo, muitas vezes consultado pela
própria Academia sueca a respeito de um ou outro neologismo a exigir
correspondente em Esperanto.
Não bastasse isso tudo, aos
trinta anos de idade, caiu-lhe nas mãos um volume do Grande Sertão: Veredas, do
nosso imortal João Guimarães Rosa. Como acontece com a maioria das pessoas,
João percebeu que estava diante de uma obra prima, escrita única, prosiverso ao
mesmo tempo, verdadeiro monumento. Leu
devagar, degustando o texto, embrenhou-se no sertão rosiano das palavras
inventadas, e ao final do livro – em estado de absoluto arrebatamento – tomou
uma decisão impossível:
– Vou traduzi-lo para o
Esperanto!
João
leu, releu, leu outra vez o título do livro e pensou, Como vou traduzir a
palavra “sertão”? Empacou no título, mas teve a exata dimensão da grandeza do
Projeto. Enviou então mensagem bastante explícita a cada um dos amigos ou
correspondentes mundoafora, com os seguintes dizeres:
–
Não me procurem nos próximos 10 anos, estarei ocupado! Obrigado pelo respeito.
E
nunca mais se ouviu falar do João.
Boatos
correm na rede: João separou-se da mulher, casou-se com uma menina bem mais
nova e está morando no Leblon; João cuida de uma granja com 5 mil galinhas;
depois de assistir o filme Na mira do chefe, João mudou-se para Bruges, onde
toca pequeno comércio de frutas na feira dominical; dizem que João suicidou-se;
outros desmentem com veemência esta última hipótese, amparados no fato de que
João foi visto recentemente na fila do Vaticano para visitar a Capela Sistina; João
mudou-se para a Austrália e dedica-se ao mergulho na Grande Barreira de Corais,
informação que obtive de uma brasileira também perdida por lá; forte corrente
de opinião garante que João enlouqueceu e encontra-se internado, proibido de
ler Guimarães Rosa; João sucumbiu ao traduzir a cena da mortandade dos cavalos
– há poucas cenas tão brutais na literatura mundial! –, morrendo de infarto
agudo do miocárdio.
O
certo é que ninguém acredita que João prossiga no Projeto, por não ter conseguido
resolver o problema da palavra “sertão”.
Maravilhoso André!
ResponderExcluirSerá? Pelas características de João, as quais o narrador expôs quando de sua juventude, acredito que João possa prosseguir no Projeto sim, bastando apenas o querer!
ResponderExcluirPobre João! Difícil escolha, a de tradutor. Tenho uma hipótese: suspeito que esteja até hoje num garimpo de Minas, na esperança de encontrar uma grande esmeralda.
ResponderExcluirSerá que está piegas?!!
ResponderExcluirTenho quase certeza de que conheço o João.
Tenho quase certeza de que vejo diariamente "coisas" no João pela minha ótica que ninguém vê porque com toda minha certeza o João já me ensinou e ainda ensina.
Com toda certeza o João é prodígio.
E se ele ainda está mesmo " empacado" com a palavra sertão ele teve tempo de democratizar todo conhecimento que nele se encerra.
Margareth Rose E. B. P. Marotta
Querida Margareth, asseguro que você não conhece João. Não é quem você está pensando... Abraço.
ExcluirAdorei!!!
ResponderExcluirPois é, até você entrou na história!
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