quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O Projeto

Ao meu irmão Paulo.


            Não conheço o homem mas sei que ele existe. Sei que ele reside numa pequena cidade do interior de São Paulo, onde há boa qualidade de vida e sossego suficiente para que se possa desenvolver o Projeto.
            Para tornar mais fácil minha função de narrador, passo a chamá-lo João. Pois João gosta das palavras, sempre gostou, como tantos de nós. Desnecessário dizer que se trata de um leitor compulsivo, hábito adquirido na infância e aprimorado com a ajuda da boa biblioteca municipal da cidade. Desde logo João desenvolveu leitura fluente em francês e inglês; moço dado a façanhas, devorou os sete volumes de Em busca do tempo perdido, no original. Porém, a vida dele mudou mesmo quando foi apresentado ao Esperanto.
Como todo bom Esperantista, João é um idealista. Não perde um congresso nacional ou internacional de Esperanto, corresponde-se com meio mundo – melhor dizer, com o mundo inteiro! –, tem amigos na Suécia, na Coreia do Sul, na Austrália, em toda a África. Tornou-se um especialista, respeitadíssimo, muitas vezes consultado pela própria Academia sueca a respeito de um ou outro neologismo a exigir correspondente em Esperanto.
Não bastasse isso tudo, aos trinta anos de idade, caiu-lhe nas mãos um volume do Grande Sertão: Veredas, do nosso imortal João Guimarães Rosa. Como acontece com a maioria das pessoas, João percebeu que estava diante de uma obra prima, escrita única, prosiverso ao mesmo tempo, verdadeiro  monumento. Leu devagar, degustando o texto, embrenhou-se no sertão rosiano das palavras inventadas, e ao final do livro – em estado de absoluto arrebatamento – tomou uma decisão impossível:
– Vou traduzi-lo para o Esperanto!
João leu, releu, leu outra vez o título do livro e pensou, Como vou traduzir a palavra “sertão”? Empacou no título, mas teve a exata dimensão da grandeza do Projeto. Enviou então mensagem bastante explícita a cada um dos amigos ou correspondentes mundoafora, com os seguintes dizeres:
– Não me procurem nos próximos 10 anos, estarei ocupado! Obrigado pelo respeito.
E nunca mais se ouviu falar do João.
Boatos correm na rede: João separou-se da mulher, casou-se com uma menina bem mais nova e está morando no Leblon; João cuida de uma granja com 5 mil galinhas; depois de assistir o filme Na mira do chefe, João mudou-se para Bruges, onde toca pequeno comércio de frutas na feira dominical; dizem que João suicidou-se; outros desmentem com veemência esta última hipótese, amparados no fato de que João foi visto recentemente na fila do Vaticano para visitar a Capela Sistina; João mudou-se para a Austrália e dedica-se ao mergulho na Grande Barreira de Corais, informação que obtive de uma brasileira também perdida por lá; forte corrente de opinião garante que João enlouqueceu e encontra-se internado, proibido de ler Guimarães Rosa; João sucumbiu ao traduzir a cena da mortandade dos cavalos – há poucas cenas tão brutais na literatura mundial! –, morrendo de infarto agudo do miocárdio.
O certo é que ninguém acredita que João prossiga no Projeto, por não ter conseguido resolver o problema da palavra “sertão”.


7 comentários:

  1. Será? Pelas características de João, as quais o narrador expôs quando de sua juventude, acredito que João possa prosseguir no Projeto sim, bastando apenas o querer!

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  2. Pobre João! Difícil escolha, a de tradutor. Tenho uma hipótese: suspeito que esteja até hoje num garimpo de Minas, na esperança de encontrar uma grande esmeralda.

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  3. Será que está piegas?!!
    Tenho quase certeza de que conheço o João.
    Tenho quase certeza de que vejo diariamente "coisas" no João pela minha ótica que ninguém vê porque com toda minha certeza o João já me ensinou e ainda ensina.
    Com toda certeza o João é prodígio.
    E se ele ainda está mesmo " empacado" com a palavra sertão ele teve tempo de democratizar todo conhecimento que nele se encerra.
    Margareth Rose E. B. P. Marotta

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    1. Querida Margareth, asseguro que você não conhece João. Não é quem você está pensando... Abraço.

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