terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Imprudência poética?



            Há quem afirme, certamente os mais supersticiosos, que um primeiro livro muito bom, magistral mesmo, pode transformar-se em uma terrível sina na vida do autor. Será este o caso de Valter Hugo Mãe?
            Estou a falar, como dizem os portugueses, de o remorso de baltazar serapião, assim mesmo, com minúsculas, vencedor do Prêmio José Saramago de 2007. Não estou certo se foi este o primeiro romance (penso que foi o segundo) do escritor português nascido em Angola, mas é verdade que foi o de maior sucesso, que o projetou internacionalmente.
            O livro foi um escândalo no mundo literário lusófono, ao quebrar regras de gramática e reinventar a língua de forma espetacular. Violento em seu conteúdo, ao descrever uma Idade Média indefinida no tempo, a forma no entanto chegava a beirar a poesia. Um livro inigualável!
            Ups!, aí reside o perigo, neste “inigualável”. Como tornar a escrever depois de uma obra prima logo na (quase) estreia?
            Ao terminar a leitura de o remorso, lembro-me bem do meu entusiasmo; presenteei amigos com exemplares do livro, recomendei-o o quanto pude, estava encantado. De lá para cá, penso que Mãe jamais conseguiu repetir a façanha.
            Até que chegamos ao último romance, quase uma década depois, razão desta crônica: Homens imprudentemente poéticos (Biblioteca azul, 2016).
            Comecemos pela capa da edição brasileira, que parece não ter sido do agrado do autor. Porque é mesmo horrenda! Rosa, com letras em vermelho, e o destaque descomunal para o nome do autor, a ocupar metade da capa. O título do livro, abaixo, sublinhado (?), incluindo um advérbio (?), parece insignificante. A ilustração em azul não ajuda, para dizer o mínimo.
            Bem, se o miolo agradar, o capista estará perdoado. Nesse ponto devo salientar uma questão de ordem pessoal: é provável que minha opinião esteja equivocada, que eu não tenha competência e sensibilidade para apreciar a obra, que a não tenha compreendido, e portanto de nada vale esta minha opinião. E o leitor há de desculpar-me pelo atrevimento.
            Fato é que não gostei do livro. Laurentino Gomes, o prefaciador, fala em linguagem poética: “Sua obra é repleta de poesia e desassombro linguístico”. Desassombro e poesia cabem perfeitamente para descrever o remorso, porém penso que não servem para o livro de que estamos falando.
            Alguns neologismos são insípidos, às vezes sem sentido algum (“monge maturado”, por exemplo). Em vez de poesia há uma espécie de pedantismo linguístico, necessidade mesmo de originalidade.
            Destaco pequeno trecho:

“A negra pessoa coberta oscilava num vento mínimo que parecia soprar de todos os sentidos, como se fosse o ponto concêntrico do movimento do ar. O sombrio dos seus modos subjugava Itaro [um dos protagonistas], que cedia dos joelhos, quase descendo ao chão para uma vénia demasiado vulnerável e veneradora. O artesão ouviu então a voz radial do monge maturado, esse som de toda a parte que se instalava fremindo por instantes, igual a ter cauda, demorar a escapulir-se pelo silêncio. O sábio, na sua inexpressiva máscara, lhe disse: cuidado com as pessoas ubíquas.”

            Julgue o leitor. Certamente haverá quem goste. Mas vamos esperar pelo próximo romance de Valter Hugo Mãe.


Um comentário:

  1. Parece necessário um iluminado decifrador que nos explique o que quis dizer o roqueiro simpático.

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