A crônica de
Leandro Karnal (a quem admiro) de ontem no Estadão, com o sugestivo título de Pães e livros, não esconde o nobre e
elevado intuito de incentivar a leitura.
Ele começa
por Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov,
relatando uma (ficcional) segunda vinda de Jesus, ocorrida no sul da Espanha,
em plena Inquisição. O diabo entra em cena e com ele a tentação, que Cristo
recusa. Karnal complica ainda mais a situação:
“Ao dizer o transcendente “não só de pão vive o homem”,
Jesus dá uma dimensão superior para a vida. Segundo o cardeal, o Messias formou
uma religião para poucos. Ao criar pecados, recompensas, tribunais e
privilégios, a Igreja Católica teria elaborado um projeto viável para milhões.
O povo quer pão e não elevação mística. Jesus teria apostado alto demais na
espécie humana. Os homens são materiais, egoístas, centrados no aqui e agora e
pouco inclinados à compaixão ou à metafísica. Jesus seria um idealista. A
Igreja real, com sua hierarquia e poder, seria o mundo possível. O Filho
ofereceu a liberdade aos homens, mas somos apegados aos nossos grilhões.”
E o autor dá
seu recado de forma enfática: “As obras Crime e Castigo e Os
Irmãos Karamazov mudaram minha vida.” “Foi uma epifania, uma
revelação, uma luz que se acendeu e mudou minha maneira de estar no mundo.”
Cita outros autores
e textos “transformadores”, como Jó, na Bíblia, A Paixão Segundo G.H.,
de Clarice Lispector, Dante, Cervantes, Machado de Assis, além de Hamlet,
de Shakespeare. Karnal não para por aí:
“Li muitos livros. Porém, apenas duas dúzias deles
trouxeram uma luz ao final que, aportando o barco da consciência à página
derradeira, percebia-me atônito, feliz, impactado e, algumas vezes, mudo entre
lágrimas. As ideias haviam mudado de lugar. Fechado o livro, eu era outro.
Tinha sentimentos variados como raiva, amor, emoção. Uma parte minha se
rebelava porque o escritor genial me arrancara de um nicho e me jogara ao
vazio, ironizando minha percepção rasa da existência. Outra parte pensava que a
vida valia a pena por ter chegado consciente ao momento daquele livro nas
minhas mãos.”
É verdade que um grande livro é capaz de provocar fortes sentimentos.
É verdade que um grande livro pode mudar nossa maneira de ver o mundo. É
verdade que a boa leitura faz parte de nossa educação, na mais ampla acepção do
termo. Mas isso pode ser dito sem esses derramamentos sentimentaloides
utilizados pelo nobre colunista, que escreve para jornal, aos domingos.
Ou ele não sabe (claro que sabe) que metade da população
brasileira é composta por analfabetos funcionais? Prescrever Dostoievski para
uma dessas pessoas é distanciá-las ainda mais da literatura. Louvo (e até
invejo) o nível intelectual de Karnal e reconheço que só a ele, ao seu contínuo
e permanente esforço, é que se deve tal façanha. Porém, sejamos realistas.
Melhor bater na mesma tecla de sempre: educação,
educação, educação... Melhor explicar como se pode chegar a Dostoiévski, a
partir da velha e boa cartilha do bê a bá. Claro que os autores e livros
citados são todos fundamentais, mas não são para todos, infelizmente. E não
digam que este blogueiro está sendo elitista; ao contrário, ele torce par que
todos cheguem lá! Porém, há um método para isso. (Até na loucura há um método,
afirma Shakespeare.)
Ao final de sua crônica, Karnal exagera no mau gosto:
“Faça um
selfie da sua alma: leia um clássico.”
O Louco
recomenda: se puder, leia um clássico; se não, leia quem lhe agrade. Mas leia.
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