segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Dostoievki para analfabetos funcionais?



A crônica de Leandro Karnal (a quem admiro) de ontem no Estadão, com o sugestivo título de Pães e livros, não esconde o nobre e elevado intuito de incentivar a leitura.
Ele começa por Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov, relatando uma (ficcional) segunda vinda de Jesus, ocorrida no sul da Espanha, em plena Inquisição. O diabo entra em cena e com ele a tentação, que Cristo recusa. Karnal complica ainda mais a situação:
“Ao dizer o transcendente “não só de pão vive o homem”, Jesus dá uma dimensão superior para a vida. Segundo o cardeal, o Messias formou uma religião para poucos. Ao criar pecados, recompensas, tribunais e privilégios, a Igreja Católica teria elaborado um projeto viável para milhões. O povo quer pão e não elevação mística. Jesus teria apostado alto demais na espécie humana. Os homens são materiais, egoístas, centrados no aqui e agora e pouco inclinados à compaixão ou à metafísica. Jesus seria um idealista. A Igreja real, com sua hierarquia e poder, seria o mundo possível. O Filho ofereceu a liberdade aos homens, mas somos apegados aos nossos grilhões.”

E o autor dá seu recado de forma enfática: “As obras Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov mudaram minha vida.” “Foi uma epifania, uma revelação, uma luz que se acendeu e mudou minha maneira de estar no mundo.”
Cita outros autores e textos “transformadores”, como , na Bíblia, A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, Dante, Cervantes, Machado de Assis, além de Hamlet, de Shakespeare. Karnal não para por aí:
“Li muitos livros. Porém, apenas duas dúzias deles trouxeram uma luz ao final que, aportando o barco da consciência à página derradeira, percebia-me atônito, feliz, impactado e, algumas vezes, mudo entre lágrimas. As ideias haviam mudado de lugar. Fechado o livro, eu era outro. Tinha sentimentos variados como raiva, amor, emoção. Uma parte minha se rebelava porque o escritor genial me arrancara de um nicho e me jogara ao vazio, ironizando minha percepção rasa da existência. Outra parte pensava que a vida valia a pena por ter chegado consciente ao momento daquele livro nas minhas mãos.”

            É verdade que um grande livro é capaz de provocar fortes sentimentos. É verdade que um grande livro pode mudar nossa maneira de ver o mundo. É verdade que a boa leitura faz parte de nossa educação, na mais ampla acepção do termo. Mas isso pode ser dito sem esses derramamentos sentimentaloides utilizados pelo nobre colunista, que escreve para jornal, aos domingos.
            Ou ele não sabe (claro que sabe) que metade da população brasileira é composta por analfabetos funcionais? Prescrever Dostoievski para uma dessas pessoas é distanciá-las ainda mais da literatura. Louvo (e até invejo) o nível intelectual de Karnal e reconheço que só a ele, ao seu contínuo e permanente esforço, é que se deve tal façanha. Porém, sejamos realistas.
            Melhor bater na mesma tecla de sempre: educação, educação, educação... Melhor explicar como se pode chegar a Dostoiévski, a partir da velha e boa cartilha do bê a bá. Claro que os autores e livros citados são todos fundamentais, mas não são para todos, infelizmente. E não digam que este blogueiro está sendo elitista; ao contrário, ele torce par que todos cheguem lá! Porém, há um método para isso. (Até na loucura há um método, afirma Shakespeare.)
            Ao final de sua crônica, Karnal exagera no mau gosto:
“Faça um selfie da sua alma: leia um clássico.”
O Louco recomenda: se puder, leia um clássico; se não, leia quem lhe agrade. Mas leia.




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