segunda-feira, 4 de julho de 2016

Carta a um homem apaixonado

Querido amigo,



você acaba de me enviar uma verdadeira missiva, longa, cheia de pequenos e saborosos detalhes, falando um pouco de tudo e de todos, que seria perfeita se fosse enviada pelo correio, carta de verdade, manuscrita, com aquela sua caligrafia de pediatra, assinada em baixo, S. Não tive outro remédio senão respondê-la de imediato, e só não a envio manuscrita com minha caligrafia torta porque desejo que a receba bem rapidinho, como manda essa nossa vida do século XXI (e também por preguiça de ir aos Correios).
            Não é fácil escrever ou até mesmo conversar com um homem apaixonado! Corremos o risco de que ele não preste atenção a uma única palavra proferida ou escrita, que tudo entre por um ouvido e saia pelo outro, ou que entre pelos olhos mas não chegue aos neurônios, pois encontra-se noutro mundo, e apenas este outro mundo lhe interessa. E só a pessoa amada faz parte deste outro mundo, ninguém mais.
            Decido correr o risco. Principalmente porque gosto de escrever cartas, embora não tenha nada de interessante para dizer. Ou tenho, mas os assuntos não haverão de interessar a um homem apaixonado. Ao contrário, vão aborrecê-lo, entediá-lo à morte – modo de dizer, força de expressão, pois a única coisa sobre a qual um homem apaixonado não deseja falar é da morte, pois a vida se lhe mostra plena, abundante, transborda de prazer, e ele deseja que este amor seja imortal (“enquanto dure”, acrescentou o “Poetinha” desmancha prazeres).
            Além da morte, há um outro assunto proibido, porque correlato, do qual um homem apaixonado deseja passar bem longe! A velhice. Como estou perto de completar 70 anos, e este número me assusta, assim redondo, sonoro, um grito rouco, inapelável como a espada de Dâmocles, o tema torna-se inevitável. Veja, meu querido amigo, já estou a falar dele, sem mesmo uma introdução que o atenue, uma preparação para não assustar o leitor: pronto, escrevo de supetão, a velhice.
            Falar da velhice é falar de achaques, dores, tombos (tropecei hoje no degrau da varanda e me estabaquei no chão, por sorte não fraturei um osso nobre, como o colo do fêmur), doenças, remédios, insônias, dispneias, broncoespasmos, lombalgias, e o pior de tudo, esquecimentos! Ah! os esquecimentos! Principalmente o esquecimento de nomes próprios: como era mesmo o nome daquele colega que encontramos em Londres, rapaz certinho demais, e que foi pego com libras esterlinas falsas ao desembarcar na ilha, ainda no aeroporto?
Falar da velhice é falar da morte e isso não interessa de modo algum a um homem apaixonado.  
            Muito menos interessa falar de política, em especial a nossa. Ou de futebol (embora o Palmeiras seja o líder isolado do Brasileirão, por ora, o que me tem proporcionado imensa alegria, veja você, meu amigo, o que ainda pode proporcionar alegria a um velho). Ou de cinema, música, literatura, pois nada interessa a um homem apaixonado que não seja falar da mulher amada.
            Difícil escrever a um homem apaixonado. Arrisco mesmo assim, para dizer que o nosso jardim continua lindo, a despeito da inclemente seca do inverno no cerrado. Vez ou outra encontro uma flor, tiro uma foto, faço um haicai, coloco no blog. Peguei a mania do haicai. Veja você, querido amigo, acabo de fazê-lo, sem sentir:

encontro uma flor
componho foto e haicai
coloco no blog

            E não é que a vida fica mais leve!!! Minha vida de cirurgião foi toda desenvolvida na universidade. Gostava de dizer que, para tudo que fazia, havia sempre alguém do lado a aprender, eu tentando ensinar. Repartir, eis o hábito. Talvez seja o hábito de repartir que tenha me levado ao blog. O que penso, o que sinto, o que vejo de interessante nesse mundo tão desinteressante, procuro repartir, compartilhar. (Na maioria das vezes, compartilho comigo mesmo, o que não é pouco...)
            Por isso esta Carta A Um Homem Apaixonado vai pelo blog. Minha felicidade ao vê-lo transbordando de felicidade, desejo reparti-la com o mundo, especialmente com a mulher amada: basta que ela acesse o Louco por cachorros.
            Grande abraço,

do amigo de sempre,

a.



(sem data)

Um comentário:

  1. Ótimo! Crônica perfeita, em forma de carta. Suave, irônica, melancólica, bem humorada, tudo na dose certa.

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