quinta-feira, 24 de março de 2016

Uso do palavrão

Comecemos esta crônica com um pequeno texto que há de ilustrar com engenho e arte o tema central a ser aqui tratado:

“Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... E, já agora, privatize-se também a PUTA QUE OS PARIU A TODOS.”
           
Para quem ainda não identificou o autor do pronunciamento, trata-se de José Saramago, o nosso Nobel da Língua Portuguesa. O homem estava “puto da vida”, e não encontrou outra forma de manifestar seu inconformismo, indignação e ira, a não ser com um sonoro palavrão.
O mesmo fenômeno pode ser observado em vários romances do autor: o leitor vem acompanhando um texto sisudo, circunspecto, e de repente surge o que se convencionou chamar, na língua portuguesa, de palavrão. O impacto é enorme, a surpresa mexe com o leitor, este não sabe se pode rir, o assunto era tão sério!, até que se dá conta do deboche do autor, e ri.
Podemos dizer que o palavrão, nessas circunstâncias – ou bem empregado – desmoraliza o sintoma. Palavrão é uma palavra como outra qualquer, com a capacidade de quebrar o clima, seja em um texto, numa conferência, em sala de aula, até mesmo numa sessão de psicanálise. Perdi a conta das vezes em que, em sala de aula, inesperadamente (este o segredo do negócio!), proferi no mais alto brado um puta-que-pariu, para gargalhada dos estudantes, todos muito jovens, que jamais poderiam esperar do professor uma atitude daquelas, irreverente, audaciosa, franca, humana como eles.
Certa feita, ao término de uma aula, uma certa aluna pediu para conversar comigo. Com muito cuidado, me disse:
– Professor, suas aulas são maravilhosas, inesquecíveis mesmo. Mas tem uma coisa... O senhor fala muito palavrão!
Eu não falava muito palavrão, apenas um ou dois por aula. Mas aquilo a agredia em demasia, era incompatível com a imagem que construíra do professor.
Chegamos pois ao assunto desta crônica, o palavreado de políticos importantes revelado em recentes escutas telefônicas. Agrada a alguns, a outros não. Os primeiros alegam que esta é a linguagem do povo (?) e o político que assim se manifesta aproxima-se do povo. O segundo grupo arrepia-se com tamanha falta de compostura linguística.
Bem verdade que a intimidade de uma conversa telefônica permite certa descontração, o que é bem diferente do registro de um texto ou de um pronunciamento público. Mas para tudo há limite.
Ex-presidente, governadores, ministros de estado, políticos do primeiro escalão foram pegos conversando como marginais analfabetos, exprimindo impressionante pobreza de linguagem, quando o palavrão perde o sentido pela frequência com que é pronunciado, como se fosse uma pontuação. Passa a doer no ouvido.
Se isso faz com que o político se aproxime do povo, então o povo precisa educar-se. Já os políticos...



2 comentários:

  1. Puta que pariu! A excelência da crônica exige pelo menos mais dois pontos de exclamação. Da surpresa causada pelo palavrão em meio à sisudez de um texto do mestre Saramago à falta de surpresa e de eficácia quando usado em meio à indigência da frase ela mesma pobre no léxico e na construção. Nesse caso, resta ao leitor um robusto, sonoro e providencial puta que o pariu!

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