quinta-feira, 9 de abril de 2015

Uma questão sobre a vida e a obra de S. Freud


Freud e o amigo Fliess, no início de 1890.

Um amigo fraterno, seguidor deste blog, e que inicia a formação em Psicanálise, dirige-me a seguinte pergunta, para ser respondida – um pedido dele – no Loucoporcachorros: “Por que é importante à formação do psicanalista o conhecimento da biografia do Dr Freud?”. Ele argumenta ainda que “em outras ciências isso não é necessário em absoluto”.

Comecemos pelo princípio. De fato, Freud, ao escrever o artigo Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (Ed. Standard Brasileira, Vol. XII, p. 125, 1912), não fez qualquer referência à necessidade da leitura da própria biografia. Esta leitura, portanto, não é indispensável.
Todavia, em muitos momentos a vida de Freud confunde-se com a própria ciência que ele desejava fundar. Sim, porque ele é considerado o criador da Psicanálise.
Dois bons exemplos desta inter-relação entre vida e obra são a autoanálise e a interpretação dos próprios sonhos. Evidentemente, Freud não dispunha de um colega psicanalista, para que pudesse ser por ele analisado. Dispôs-se então, com incrível disciplina, perseverança, coragem acima de tudo, a iniciar o que ele chamou de autoanálise. A tarefa era dificílima, se não impossível; certamente foi realizada de forma imperfeita e incompleta. Mas era o que ele podia fazer naquele momento, dispondo apenas de seu gênio.
A interpretação dos próprios sonhos é parte fundamental desta autoanálise. Este trabalho minucioso, diuturno, pôde ser compartilhado com alguns amigos, através de uma infinidade de cartas, em particular com Wilhelm Fliess (1858-1928), médico otorrinolaringologista, de quem Freud tornou-se íntimo. (Penso que é indispensável a leitura de algumas destas cartas, saborosíssimas porque muito bem escritas!1)
Na longa carta datada de 15 de outubro de 1897 (anterior, portanto, à Interpretação dos sonhos), endereçada ao “Querido Wilhelm”, onde um importante sonho é relatado, lemos:

“... Ser totalmente franco consigo mesmo é um bom exercício. Uma única ideia de valor geral despontou em mim. Descobri, também em meu próprio caso, o fenômeno de me apaixonar por mamãe e ter ciúme de papai, e agora o considero um acontecimento universal do início da infância, mesmo que não ocorra tão cedo nas crianças que se tornam histéricas. ... Se assim for, podemos entender o poder de atração do Oedipus Rex, a despeito de todas as objeções que a razão levanta contra a pressuposição do destino. ...Cada pessoa da plateia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e cada uma recua, horrorizada, diante da realização de sonho ali transplantada para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do estado atual.”

           Aqui nesta carta, onde a intimidade do autor é corajosamente exposta, vida e obra se confundem. Não fosse por qualquer uma dessas razões, ou por tantas outras, o fato de tratar-se de um gênio, como poucos até hoje, só isso justificaria a leitura da biografia de Sigmund Freud.
            É o que penso sobre a questão levantada por meu amigo. Ele tem razão quando afirma que isso não se verificou em outras ciências. A vida de Albert Einstein pouco ou nada tem a ver com a Teoria da relatividade em si mesma. Tampouco a de Charles Darwin com a Teoria da evolução das espécies. Com Freud, foi diferente.


(1) Masson J M, editor. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhem Fliess – 1887-1904, Imago editora,1986.

11 comentários:

  1. Doutor, o amigo citado no texto contou reservadamente ao Extrato que se sente imensamente agradecido por ter tido o prazer de ter um de seus inúmeros questionamentos sobre a matéria psicanalítica considerado aqui no Louco. Coincidência ou não, ele disse que o exemplo de Einstein e a tal teoria da relatividade também foi utilizado por ele, em sala de aula, na argumentação que justificava sua dúvida. De qualquer forma, percebo que seu amigo está começando a compreender o fato de que a Psicanálise deseja que o estudante tenha a experiência de um contato afetivo - no sentido mais elevado do termo - com seu criador; a mesma experiência que é vivida quando a beleza da obra nos impulsiona conhecer a vida. Por exemplo, conhece-se a música de Bach, encanta-se com ela e daí surge a pergunta: "Quem é esta pessoa?". De alguma forma, à Psicanálise não basta a obra, mas também a vida, pois ambas são de fato inseparáveis.

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    1. Foi um prazer tentar responder ao seu amigo, e agradeço pela pergunta. Foi-me útil para pensar no assunto e revisitar uma carta de Freud ao amigo Fliess. Obrigado também pelos comentários acima.

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  2. Talvez não seja indispensável. Mas é recomendável. Não basta?

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  3. O autor deste blog, no meu ver, conseguiu responder o questionamento, se colocando com clareza, e o que chama especial atenção, com extrema delicadeza e amorosidade. Formas que ajudam em muito a abertura da compreensão de quem indaga.

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  4. Não chamou especial atenção do indagador - que já encomendou o livro citado, das cartas de Freud para Fliess - nem a clareza do texto e muito menos a delicadeza e a amorosidade extremas do autor do blog: no trato com seus amigos, essas três qualidades sempre foram peculiares ao Dr André.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Concordo com o Dr Paulo e também com a bela nutricionista iraniana, mas desde que a fonte que recomenda seja confiável; é esse o caso do autor do post.

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  7. O meu amigo Aldo reclamou dos comentários...

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