segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Macunaíma, politicamente incorreto


Saudade do tempo em que nossas falas ou dizeres não eram divididos em politicamente corretos ou incorretos. A gente dizia o que pensava e pronto, estava dito. Monteiro Lobato era mestre nisso e por isso agradava tanto às crianças, espontâneas por natureza.
            Agora, ao reler Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, na nova e primorosa edição comemorativa da Nova Fronteira (2015), volto a me surpreender logo na primeira página do romance, por sua franqueza, espontaneidade, naturalidade, texto que certamente seria duramente criticado nos dias de hoje pelas patrulhas de plantão. Por isso, reproduzo aqui o início do livro.

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
            Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
            – Ai! que preguiça!...
e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha  os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaiamuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mocambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a porcê o torê o bacororô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.
            Quando era pra dormir trepava no macuru pequenino sempre se esquecendo de mijar. Como  a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.”

            Tudo é muito novo – e permanece novo – na linguagem de Mário de Andrade, incluindo a gramática. O homem não tinha medo de ousar. Guspia na cara..., politicamente incorretíssimo, ao descrever o “nosso herói”.
            Essa edição comemorativa da Nova Fronteira traz um interessante Caderno de Fotos, além de depoimento de Rachel de Queiroz sobre a obra.
            Aos que já leram Macunaíma, esta nova edição é um convite à releitura. Aos mais jovens, que nunca o leram, um convite.
           


Um comentário:

  1. Precisamos reler! Tem toda a razão! O trecho selecionado é de abrir o apetite.

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