segunda-feira, 27 de julho de 2015

O suicídio do amigo


Na medíocre aridez dos jornais de domingo encontramos o surpreendente artigo “Drummond e Ganimedes – homossexualidade na vida e obra do poeta”, de autoria de Marcelo Bartoloti, 40, jornalista, mestre em artes e doutorando em literatura brasileira pela UFRJ, publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo deste domingo (26/7).
            O resumo do artigo é bastante esclarecedor:
“Após a morte do amigo Pedro Nava, em 1984, Drummond deu declarações polêmicas em entrevistas considerando atitudes homossexuais como algo repugnante, e foi alvo de críticas. Porém, em poema publicado em livro em 1951, inspirado por mito grego de rapto de jovem por Zeus, o mineiro demonstrava visão tolerante.”
            A morte do amigo possivelmente constituiu-se em um trauma para Drummond, a gerar sentimentos ambíguos, conflitantes, difíceis de suportar para um espírito sensível como o do poeta. A reportagem sugere que Drummond foi um tanto desastrado nas entrevistas após o infausto acontecimento. Procurou retratar-se com o poema Rapto, publicado no livro Claro Enigma. Ou seria ele, avesso às reportagens, desajeitado mesmo com este tipo de comunicação, e a poesia seu veículo ideal para transmitir suas ideias e sentimentos?
            Pre-conceitos, quem não os tem? Exigir de nosso poeta maior que não os tivesse, impossível. O resultado do provável conflito é o belíssimo poema, aqui reproduzido:

RAPTO

Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e é suspiro
de terrena delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o voo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérolas dúbias das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
 e tudo é triste sob o céu flamante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia),
baixemos nossos olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
 ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.

            Resta ao leitor interpretar algumas passagens mais herméticas do poema, inspirado no mito grego do rapto de Ganimedes por Zeus, disfarçado em águia. Mas não resta dúvida quanto à tolerância do poeta diante do tema, expressa no belíssimo último verso.



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