Na
medíocre aridez dos jornais de domingo encontramos o surpreendente artigo
“Drummond e Ganimedes – homossexualidade na vida e obra do poeta”, de autoria
de Marcelo Bartoloti, 40, jornalista, mestre em artes e doutorando em
literatura brasileira pela UFRJ, publicado no caderno Ilustríssima da Folha de
S. Paulo deste domingo (26/7).
O resumo do artigo é bastante
esclarecedor:
“Após a morte do amigo Pedro Nava, em 1984, Drummond
deu declarações polêmicas em entrevistas considerando atitudes homossexuais
como algo repugnante, e foi alvo de críticas. Porém, em poema publicado em
livro em 1951, inspirado por mito grego de rapto de jovem por Zeus, o mineiro
demonstrava visão tolerante.”
A morte do amigo possivelmente constituiu-se em um trauma
para Drummond, a gerar sentimentos ambíguos, conflitantes, difíceis de suportar
para um espírito sensível como o do poeta. A reportagem sugere que Drummond foi
um tanto desastrado nas entrevistas após o infausto acontecimento. Procurou
retratar-se com o poema Rapto, publicado no livro Claro Enigma. Ou seria ele,
avesso às reportagens, desajeitado mesmo com este tipo de comunicação, e a
poesia seu veículo ideal para transmitir suas ideias e sentimentos?
Pre-conceitos, quem não os tem? Exigir de nosso poeta
maior que não os tivesse, impossível. O resultado do provável conflito é o
belíssimo poema, aqui reproduzido:
RAPTO
Se uma águia fende os ares
e arrebata
esse que é forma pura e é
suspiro
de terrena delícias
combinadas;
e se essa forma pura,
degradando-se,
mais perfeita se eleva,
pois atinge
a tortura do embate, no
arremate
de uma exaustão
suavíssima, tributo
com que se paga o voo mais
cortante;
se, por amor de uma ave,
ei-la recusa
o pasto natural aberto aos
homens,
e pela via hermética e
defesa
vai demandando o cândido
alimento
que a alma faminta implora
até o extremo;
se esses raptos terríveis
se repetem
já nos campos e já pelas
noturnas
portas de pérolas dúbias
das boates;
e se há no beijo estéril
um soluço
esquivo e refolhado, cinza
em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamante
(que o pecado cristão, ora
jungido
ao mistério pagão, mais o
alanceia),
baixemos nossos olhos ao
desígnio
da natureza ambígua e
reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no
acerbo amor.
Resta ao leitor interpretar algumas passagens mais
herméticas do poema, inspirado no mito grego do rapto de Ganimedes por Zeus,
disfarçado em águia. Mas não resta dúvida quanto à tolerância do poeta diante
do tema, expressa no belíssimo último verso.
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