quarta-feira, 1 de abril de 2015

A Entrevista, de Suzete


O jovem repórter do principal jornal da cidade soube da existência de Suzete por um amigo também jornalista que cortara cabelo com ela e ficara impressionado com a cultura literária da cabeleireira. Resolveu entrevistá-la, Acho que dá uma boa matéria, no mínimo curiosa, pensou.
            Fez o primeiro contato por telefone, Em dia de trabalho não posso, Suzete foi logo avisando, Pode chegar cliente. No domingo pela manhã está bom pra você?, Para mim está, Onde?, No banco da praça, Ok, Até lá então.
            (O que é que este sujeito quer comigo? Uma simples cabeleireira, nem bonita eu sou, mas também não sou feia, ando sempre arrumadinha, as meninas fazem minhas unhas, o cabelo bem cortado, minhas roupas não são de marca porque tenho essa mania de gastar meu dinheiro com livros, quase todos usados, adquiridos em sebos, mas tenho muito orgulho deles. Pois é, o que será que ele quer comigo?)
            Às 9 em ponto, no domingo combinado, lá estavam os dois na praça arborizada, cheia de cantos de passarinhos e arrulhar de pombos, Dia lindo, não!, o repórter tentou ser amável, Suzete respondeu secamente, É. Daqui a pouco chega o fotógrafo, vamos precisar de uma foto para o jornal, explicou ele. Suzete não gostou da ideia, Foto para que?, Para ilustrar a matéria...
            (Não fui com a cara desse rapaz, não sei bem por que. Balzac diria que ele é um salta pocinhas, expressão que adoro, bem mais elegante que o chamar de veadinho. E ainda por cima com o cabelo mal cortado. Vamos ver no que isso vai dar.)
            Então, podemos começar? Claro.

1) Qual seu nome completo e onde nasceu?
            Suzete Alves da Cunha, assim mesmo, com Z. Nasci num povoado ao pé da Serra da Mantiqueira, chamado Pedrinhas, cortado por um lindo ribeirão cujo leito é forrado de pedrinhas, daí o nome do lugar. Além da igrejinha e da venda do Seu Manoel, apenas uma dúzia de casebres. A sorte é que ainda menina fui morar com meus tios, em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba. Conhece? Aparecida do Norte que fica bem pertinho você há de conhecer, por causa da Basílica. Mas como é o seu nome mesmo? Pedro. Pois é Pedro, mas tem uma coisa, o que eu não posso atinar é em que essas coisas poderiam interessar ao leitor do seu jornal.
           
2) Como é que você começou a cortar cabelo?
            Quando me mudei para Guará, menina miúda, com 9 anos de idade, vinda da roça, fui morar com meus tios por parte de pai. Eles foram muito bons para mim, o que mudou completamente a minha vida. Meu tio pedia que eu lhe cortasse o cabelo toda semana. Ensinou-me a manejar pente e tesoura, usar a gilete para fazer o pé do cabelo no pescoço, fui tomando gosto pela coisa, passei a cortar o cabelos dos dois filhos deles, que me tratavam como irmãos, até que virou uma profissão. Muito cedo passei a ter o meu dinheirinho, o que me possibilitou sair da casa de meus tios em virtude de acontecimentos funestos, que não desejo relatar aqui.

3) E como uma cabeleireira torna-se uma leitora como você?
            Esse tio de quem lhe falei tinha uma ótima biblioteca. No começo ele me recomendava as leituras, depois fui descobrindo os autores, nunca mais parei de ler.
           
4) Verdade que você também escreve? Pensa em publicar um livro?
            Adoro escrever, mas nunca me passou pelo bestunto publicar um livro. Isso é coisa para gente grande. Aprendi com um amigo meu psicanalista, coordenador de uma oficina de escrita, que escrever pode ser terapêutico. Gostei da ideia, escrevo para mim mesma, às vezes escrevo para uma amiga do salão, mas nunca lhe enviei uma carta sequer. E quer saber de uma coisa, seu Pedro, você só está me perguntando essas coisas porque sou uma cabeleireira, você vai me apresentar no seu jornal como um bicho exótico de jardim zoológico, CABELEIREIRA QUE GOSTA DE LER E ESCREVER, como se isso fosse coisa do outro mundo! Acho isso um puta preconceito, sabe. Além do meu tio, tive a sorte de frequentar uma boa escola, o Instituto de Educação Conselheiro Rodrigues Alves, em Guaratinguetá. Sabe quem foi Rodrigues Alves? Não sabe, hoje ninguém mais conhece essas inutilidades, não é mesmo? E tive um ótimo professor de português, Seu Afonso, homem lindo, grisalho, com um pequeno topete caído sobre a testa, lindo de morrer, o melhor professor do mundo. Isso sim, é que conta. Agora, se sou cabeleireira, manicure, puta, isso não tem importância alguma. E esse seu jornalzinho de merda vai fazer o maior estardalhaço com essa notícia. Quer dizer, depois do que estou dizendo acho que você não vai publicar porra nenhuma... Melhor assim, terminamos aqui esta entrevista. Prazer em conhecê-lo. E pode dispensar o fotografo.

Notas interessantíssimas, a partir de investigações e conjecturas realizadas por este blogueiro, fiel depositário do Baú da Suzete, sobre o texto acima:

1 – Este texto foi encontrado em um dos cadernos de Suzete, sem data, com o título Entrevista.

2 – Tanto quanto pude investigar, esta entrevista nunca aconteceu, e portanto não poderia mesmo ter sido publicada; tampouco existiu o jovem jornalista de nome Pedro, segundo consulta realizada junto ao próprio hebdomadário.

3 – Dona Osvaldina não é a mãe verdadeira de Suzete, e sim a tal tia que a criou a partir dos 8 ou 9 anos de idade. Os dados autobiográficos do texto são verídicos, segundo a própria tia. Quanto aos tais “acontecimentos funestos”, Dona Osvaldina também não quis se manifestar.

4 – O texto, pura ficção, apresenta certa sofisticação literária, por conter um narrador externo, que dá início à história e propõe a escrita sob a forma de entrevista. Há uma segunda voz, oriunda de uma personagem secundária bastante apagada, o jornalista, usada pela própria autora (a terceira voz), para manifestar o que podemos chamar de conflito emocional.

5 – A ambiguidade da autora, que beira um delírio nesse texto, está presente de forma clara: ao mesmo tempo que deseja ser reconhecida socialmente (nada mais público que uma entrevista para um jornal!), há um forte ressentimento pelo fato de exercer profissão considerada por ela de importância menor. (A certa altura ela coloca no mesmo nível a cabeleireira, a manicure e a prostituta.) Talvez por isso ela insista em reafirmar seu gosto por “cortar cabelo de homem” em praticamente todos os textos publicados até agora. O fato de cortar cabelo apenas de homens terá algo a ver com os tais “acontecimentos funestos” que a tiraram bem cedo da casa dos tios?

6 – Aquelas pessoas que conviveram por longos anos com Suzete no salão, suas colegas de trabalho, nunca conheceram reação tão violenta quanto a manifestada aqui, acusando o interlocutor imaginário de compará-la a um “bicho exótico de jardim zoológico”, apenas para virar notícia no “jornalzinho de merda”. O gosto pelo uso de palavras de baixo calão é próprio da autora, que alega ter aprendido com Marcelo Mirisola, como informa no primeiro capítulo do Folhetim (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/search/label/Folhetim).

7 – Provavelmente haveremos todos de conhecer novas facetas da personalidade complexa de Suzete, à medida que outras revelações venham à tona, extraídas do Baú.

3 comentários:

  1. A coisa está ficando sofisticada! Metaficção? Ficção sobre ficção! Isso ainda vira livro! Divertidíssimo! Suzete já é gente muito viva para os leitores do ´louco´.

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  2. É isso tio Paulo, o texto da Suzete é sofisticado!! Ela é complexa e expõe isso com várias ferramentas literárias.
    BOM DEMAIS!!!!!

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  3. A Suzete fez um verdadeiro processo psicoterapêutico ao criar um diálogo dela com ela mesma com suas questões de auto-aceitação e autocrítica!!!

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