Há pouco mais de uma semana
o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, 65, publicou na Folha a
crônica Liberalismo falha em proteger
seus valores, sobre os recentes acontecimentos na França e suas implicações
políticas. (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/01/1575750-liberalismo-falha-em-proteger-seus-valores-comenta-zizek.shtml)
Despertou-me
logo a atenção o primeiro parágrafo do texto, riquíssimo em conteúdo – mesmo
que não concordemos com ele –, e apenas sobre ele teço aqui meus comentários, o
que poderá ser considerado um grande atrevimento meu. Eis o texto:
“Agora, quando estamos todos em estado de
choque após a orgia de mortes na redação do "Charlie Hebdo", é o
momento certo para criarmos coragem para pensar. Agora, e não mais tarde,
quando as coisas se acalmarem, como procuram nos convencer os proponentes da
sabedoria barata: o difícil é justamente combinar o calor do momento com o ato
de pensar. Pensar na calma e frieza do dia seguinte não gera uma verdade mais
equilibrada; em vez disso, normaliza a situação, permitindo que evitemos
enxergar o fio cortante da verdade.”
A
capacidade de Zizek despertar polêmicas é bem conhecida e parece que ele usa
tal característica como uma missão, para a qual é preciso ter muita coragem. Em
tudo que ele toca, vira discussão. O que é muito bom, em meu ponto de vista, no
mundo certinho e politicamente correto em que vivemos.
Porém,
talvez ele tenha exagerado na introdução de suas ideias sobre os atentados
terroristas na França. Talvez... melhor pensar um pouco mais...
Pensar no
calor da emoção, e não mais tarde, “quando as coisas se acalmarem”, é o que
propõe o filósofo. Entendo que a expressão “quando as coisas se acalmarem”, da
forma que foi utilizada por Zizek, diz respeito ao mundo exterior, aos fatos,
aos acontecimentos que se sucederão após a tragédia, tanto de um lado como de
outro, nesta espécie de Cruzada do século XXI.
O que
desejo considerar aqui é que a expressão “quando as coisas se acalmarem” pode
perfeitamente aplicar-se ao mundo interno, quando sentimentos os mais variados
como susto, ódio (especialmente o ódio cego do fundamentalismo), amor – por que
não? –, consideração pelo semelhante, medo, desejo de vingança, e tantas outras
emoções tenham arrefecido, permitindo que o “aparelho de pensar” (Bion) volte a
funcionar normalmente.
Ainda bem
que Zizek admite que “o difícil é justamente combinar o calor do momento com o
ato de pensar”. Eu diria que não é difícil; é impossível, pela própria natureza
humana. Antes de tudo, precisamos reconhecer nossos impulsos mais primitivos,
originários de regiões profundas de nosso ser, sobre as quais temos pouca ou
nenhuma ingerência. A única arma contra tais impulsos é o pensamento, isso
quando ele pode se manifestar. E é preciso tempo para que se possa pensar.
O
polemista filósofo faz questão de levar suas ideias às últimas consequências, e
reafirma que “pensar na calma e frieza do dia seguinte não gera uma verdade
mais equilibrada”. O que ele propõe, portanto, é “pensar” na agitação e calor
do momento da explosão. Digo que isso não é pensar, e sim, soltar a besta fera
que carregamos desde o nascimento da humanidade, cuja domesticação vem sendo
perseguida tenazmente pelo processo civilizatório.
Slavoj
Zizek adora soltar os cachorros e criar polêmica. Ele é bom nisso, e o admiro
por isso. Ele não deseja “normalizar a situação”, afirma em seguida. Normalizar
aqui significa acomodar-se, que também é uma forma de não-pensar. Pensar dá
muito trabalho. O normal – aquilo que já está pronto – não exige pensamento. É
a lei do menor esforço.
Porém, normalizar,
acomodar-se, retomar a inércia do cotidiano pode significar também perder a
capacidade de indignar-se, uma trágica e frequente manifestação da sociedade
contemporânea. Se foi isso que Zizek pretendeu com seu texto – que manifestemos
nossa indignação! – então concordo com ele.
E para terminar o denso parágrafo
que dá início à crônica, o filósofo afirma que a tal normalização nos impede de
“enxergar o fio cortante da verdade”.
No que ele tem toda razão: quando não pensamos, permanecemos distantes da
verdade. Este o grande problema do fundamentalismo, seja ele de que natureza
for: a ausência de pensamento. Paradoxalmente, Zizek parece atacar o
fundamentalismo utilizando-se de seu próprio veneno.
Por
precaução, acrescentei aos meus comentários iniciais que talvez seja melhor
pensar mais um pouco. E se Zizek estiver com a razão?