terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O diário de Boris Fausto




              O conceituadíssimo historiador e cientista político Boris Fausto, 84, autor da História do Brasil, acaba de publicar O brilho do bronze – um diário (Cosacnaify, 2014), uma escrita sobre o luto, após a morte da esposa Cynira em junho de 2010, com quem esteve casado por 40 anos.
            Como convém a um diário (a edição é simples, mas bem cuidada, sóbria, com a primeira orelha estendida, “fechando” o volume ao ser dobrada sobre a contracapa), os textos são curtos, datados, descrevendo o cotidiano solitário de um homem inteligente, culto, sensível, que procura preencher seus dias de aposentado e aplacar a dor da ausência da esposa tão querida.
            São conversas de taxi, viagens a cidades do interior, outras ao exterior, afetuosos encontros com os dois filhos, com raros amigos, com algumas mulheres bonitas, relatos de sonhos (o autor faz análise com a antiga terapeuta da esposa), observações bem humoradas sobre o cotidiano da cidade grande, comentários apaixonados sobre o Corinthians, e sobretudo visitas ao cemitério, muitas visitas. No cemitério do Morumbi estão enterrados o pai e a esposa, cujos nomes estão gravados numa lápide de bronze – daí o título do livro.
            A escrita é fluente, coloquial, elegante, intimista, de quem realmente deseja compartilhar sua dor com o leitor amigo. Leitura agradável, a despeito da melancolia presente na maioria dos textos.
            Voltemos, entretanto, a uma espécie de prólogo, onde Fausto explica a razão do diário: “Confesso que realizei um desejo inconsciente: redimir-me da culpa pelo desaparecimento do diário de um jovem quase menino com a publicação de outro, escrito por um senhor de idade”.
            Isso mesmo, ele decidiu escrever um diário aos 15 anos, e após alguns meses jogou-o no lixo (como faz a esmagadora maioria dos adolescentes que decidem escrever um diário). Sessenta anos depois, com a morte da esposa, resolve escrever um novo diário, e diz que foi por culpa, por ter desprezado os escritos do adolescente.
            Este ilustre senhor me perdoe (e também sua analista), mas esta é a justificativa mais inverossímil que ele poderia apresentar ao leitor.
            A certeza não posso ter, nem a desejo, por impossível, mas penso que Fausto decidiu escrever por dois motivos: primeiro, porque é um escritor; segundo, para ajudá-lo a vivenciar e superar o luto. Tão simples isso! Mas ele não faz uma referência sequer a esta possibilidade em todo o livro.
            Minha ideia baseia-se no fato de que o ato da escrita pode ser terapêutico, ainda mais nessas circunstâncias. E para Fausto,  a coisa ficaria mais fácil, porque ele sempre foi um escritor. Talvez por isso mesmo não tenha feito qualquer referência à função terapêutica da escrita em seu diário. O que é uma pena, penso eu.
            Mas há uma outra possibilidade: o autor, homem inteligente, culto, sensível, sabe disso, tem consciência disso, concorda com isso, mas preferiu não tornar pública esta ideia, valorizando a literatura do gênero memorialístico em si mesma. Por que ele faria isso, não posso imaginar; deve ter tido suas razões.
            

2 comentários:

  1. Uma ponderação: o motivo apresentado não deixa de ter seu cabimento. Abandonar o projeto da escrita (o diário) na adolescência não deixa de trazer certa autocensura: quanta elaboração não poderia ser feita, e não se fez! Quando ideia terá passado em branco, para nunca mais voltar. Foi também uma perda! O luto recente terá sido o mote para retomar ao suposto descuido. Só que, agora, num outro diapasão, sob a lente da idade e da perda da companheira. Da melancolia. Antes tarde do que nunca.

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    1. Ótima sua interpretação, Paulo, da qual discordo frontalmente. Abandonar um diário aos 15 anos é o melhor que se tem a fazer na vida. Já na velhice, pode ser uma tentativa de reter o presente, a própria vida.

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