quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Os cavalos de Ruffato




             Com 13 anos de atraso (primeira edição em setembro de 2001), leio agora o já famoso eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (Editora Boitempo). A motivação surgiu com a leitura do recém lançado Minha primeira vez, do mesmo autor (Arquipélago Editora, 2014), livro de crônicas até certo ponto despretensioso, no qual os “muitos cavalos” são citados com insistência. (Do Ruffato, gostei mesmo do Estive em Lisboa e lembrei de você, de 2009).
            Comecemos pelo intrigante título. A epígrafe do livro é de Cecília Meireles:

“Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes
sua pelagem, sua origem...”

            Corri atrás e encontrei já ao final do Romanceiro da Inconfidência, mais precisamente no Romance LXXXIV ou Dos cavalos da Inconfidência, da Cecília, o poema completo, que assim tem início:

Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.
Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas,
com tranquilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas,
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.
Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos
– calados, ao peso da sela,
picados de insetos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.

            E o poema prossegue, longo, belíssimo, a repetir sempre o magnífico verso, Eles eram muitos cavalos...
            Ruffato não poderia ter escolhido título melhor para seu livro: romance?, crônicas?, novela?, difícil classificá-lo, registros da vida de muita gente sem nome da cidade grande. O que impressiona mesmo é a linguagem, inovadora, áspera, agressiva, tão múltipla quanto os tipos trazidos para o livro, como por exemplo

30. O velho contínuo

            O velho continuo, amarelo o branco dos olhos, encharcou as mãos grossas, ensaboou-as, e, esfregando-as vagarosamente, desatou a falar, não com o conhecido da pia ao lado, não com o motoboy que se equilibrava no mictório, mas para quem, de todos que se espremiam no banheiro fétido, se dispusesse a ouvi-lo
a patroa ligou há pouco... está um tiroteio danado lá na rua de casa...
...

            São 70 textos, aparentemente desconexos, mas que ao final do livro oferecem um retrato fiel da vida subterrânea de São Paulo (ou de qualquer outra metrópole). O livro recebeu prêmios importantes, foi traduzido para vários idiomas, motivo de teses acadêmicas.
            Fica a questão: como é possível que um verso de uma poeta como Cecília Meireles, encontrado num longo poema como o Romanceiro da Inconfidência, ajuste-se tão bem a um texto tão diverso, na forma e no conteúdo, como este de Ruffato? Ah!, a magia das palavras...



Um comentário:

  1. É verdade! Há palavras que ressoam, ressoam, trazem pensamentos distantes, levando a gente para longe. Por isso a literatura às vezes se parece com a musica. Preciso ler esse livro.

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