Com 13 anos de atraso (primeira edição em setembro
de 2001), leio agora o já famoso eles
eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (Editora Boitempo). A motivação surgiu
com a leitura do recém lançado Minha
primeira vez, do mesmo autor (Arquipélago Editora, 2014), livro de crônicas
até certo ponto despretensioso, no qual os “muitos cavalos” são citados com
insistência. (Do Ruffato, gostei mesmo do Estive
em Lisboa e lembrei de você, de 2009).
Comecemos
pelo intrigante título. A epígrafe do livro é de Cecília Meireles:
“Eles eram
muitos cavalos,
mas ninguém
mais sabe os seus nomes
sua pelagem,
sua origem...”
Corri
atrás e encontrei já ao final do Romanceiro da Inconfidência, mais precisamente
no Romance LXXXIV ou Dos cavalos da Inconfidência, da Cecília, o poema
completo, que assim tem início:
Eles eram
muitos cavalos,
ao longo
dessas grandes serras,
de crinas
abertas ao vento,
a galope
entre águas e pedras.
Eles eram
muitos cavalos,
donos dos
ares e das ervas,
com
tranquilos olhos macios,
habituados às
densas névoas,
aos verdes
prados ondulosos,
às encostas
de árduas arestas,
à cor das
auroras nas nuvens,
ao tempo de
ipês e quaresmas.
Eles eram
muitos cavalos
nas margens
desses grandes rios
por onde os
escravos cantavam
músicas cheias
de suspiros.
Eles eram
muitos cavalos
e guardavam
no fino ouvido
o som das
catas e dos cantos,
a voz de
amigos e inimigos
– calados, ao
peso da sela,
picados de
insetos e espinhos,
desabafando o
seu cansaço
em
crepusculares relinchos.
E o
poema prossegue, longo, belíssimo, a repetir sempre o magnífico verso, Eles
eram muitos cavalos...
Ruffato
não poderia ter escolhido título melhor para seu livro: romance?, crônicas?,
novela?, difícil classificá-lo, registros da vida de muita gente sem nome da cidade
grande. O que impressiona mesmo é a linguagem, inovadora, áspera, agressiva,
tão múltipla quanto os tipos trazidos para o livro, como por exemplo
30. O velho contínuo
O velho continuo, amarelo o branco
dos olhos, encharcou as mãos grossas, ensaboou-as, e, esfregando-as
vagarosamente, desatou a falar, não com o conhecido da pia ao lado, não com o
motoboy que se equilibrava no mictório, mas para quem, de todos que se
espremiam no banheiro fétido, se dispusesse a ouvi-lo
a patroa ligou há pouco... está um tiroteio danado
lá na rua de casa...
...
São
70 textos, aparentemente desconexos, mas que ao final do livro oferecem um
retrato fiel da vida subterrânea de São Paulo (ou de qualquer outra metrópole).
O livro recebeu prêmios importantes, foi traduzido para vários idiomas, motivo de
teses acadêmicas.
Fica
a questão: como é possível que um verso de uma poeta como Cecília Meireles,
encontrado num longo poema como o Romanceiro da Inconfidência, ajuste-se tão
bem a um texto tão diverso, na forma e no conteúdo, como este de Ruffato? Ah!, a
magia das palavras...
É verdade! Há palavras que ressoam, ressoam, trazem pensamentos distantes, levando a gente para longe. Por isso a literatura às vezes se parece com a musica. Preciso ler esse livro.
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