Com o coração a
saltar pela boca de tamanha emoção, li os três primeiros – e únicos! – capítulos
de Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, de José Saramago, livrinho
que acaba de ser publicado pela Companhia das Letras. Ter uma bela história
para contar, num estilo ímpar, maravilhoso, e precisar interromper a narrativa
porque se está a morrer, é de fazer chorar as pedras.
Que é um livro, isto é, basta
olhá-lo, tê-lo nas mãos, ver a capa encimada pelo nome do autor em letras
brancas, metade do título em vermelho, que a outra metade Espingardas,
espingardas, ficou na contracapa, e se o abrimos, podemos observar que se
parece com qualquer outro livro, tem orelhas, até ilustrações ele contém, de
autoria do romancista alemão Günter Grass: de fato, é um livro.
Ao mesmo tempo, um livro não é. Não
podemos chamá-lo assim, um livro, são apenas três capítulos que dão partida a
uma história em tudo e por tudo promissora, escritos no mais puro estilo
saramaguiano – e é o estilo que importa!, é o estilo que emociona!, inconfundível!
Eis um bom exemplo, no diálogo entre Artur Paz Semedo e Felícia, que se encontram separados até o
momento:
“O telefone deu três sinais e ela respondeu, Estou,
Sou eu, o artur, Já sabia, vi aqui o teu número, Desculpa vir ligar-te a esta
hora, Ainda não é tarde, Aconteceu-me uma coisa que gostaria de te falar, Algum
problema, perguntou ela, Problema, não direi, mas estou com o espírito confuso,
Se isso é por causa de alguma mulher que acabaste de conhecer, desejo-te as
maiores felicidades, Qual mulher, qual nada, tenho coisas mais importantes em
que pensar, Olha que seria digna de exame essa tua preocupação, pelo menos
assim me parece, de quereres que acredite que não tens andado com ninguém
depois de eu ter saído de casa, Ande ou não ande, não é da tua conta, não te
diz respeito, Muito bem, explica-me então por que tens a cabecinha confusa, Há
uma semana fui à cinemateca para ver um filme chamado l`espoir, Também o vi,
estive lá anteontem, É uma história comovedora, sobretudo aquela descida da
serra de teruel, Custa a segurar as lágrimas, é certo, Eu confesso que chorei,
disse artur paz semedo, Já to disse, também eu, disse felícia. Houve um
silêncio. Podia-se pensar que estavam contentes por terem partilhado uma emoção
tão forte, quem sabe se por coincidência sentados na mesma cadeira do cinema,
mas nunca o reconheceriam, fazê-lo seria dar uma mostra de debilidade sentimental
de que o outro poderia vir a aproveitar-se. Todo cuidado é pouco com os casais
separados.”
O
não-livro termina sem ponto final; melhor dizendo, não termina. E o leitor vira
a página, vira outra página, outra mais, mais outra, e nada encontra a não ser
a nostalgia da ausência do narrador. Sente-se então o peso da morte de José Saramago,
a falta que ele nos faz.
Os três únicos capítulos são
seguidos por Anotações feitas pelo escritor, iniciadas em 15 de agosto de 2009,
singelas e deliciosas, como esta primeira frase: “Afinal, talvez ainda vá
escrever outro livro.”
A
partir de uma ideia intrigante – “nunca houve uma greve numa fábrica de
armamento” – surge o tema central do romance, e o primeiro nome que surge para
o título é Belona, a deusa romana da
guerra. Depois veio Alabardas, alabardas,
Espingardas, espingardas, inspirado em Gil Vicente.
Há pouco nessas anotações sobre o
desenrolar da história, porém, em 16 de setembro do mesmo ano o autor escreve o
que viria a ser a frase final do romance: “O livro terminará com um sonoro “Vá
à merda”, proferido por ela. Um remate exemplar.” Ela é Felícia, a mulher
divorciada do protagonista Artur Paz Semedo, pressuroso funcionário da fábrica
de armamentos Belona S.A..
Em 26 de dezembro, ainda em 2009,
Saramago registra em seu computador, com a ironia de sempre: “Dois meses sem
escrever. Por este andar talvez haja livro em 2020...” A doença grave impedia-o
de escrever, mas ele não perdia a esperança.
A última anotação data de 22 de
fevereiro de 2010, e registra uma nova ideia para o desenrolar da trama: “As
ideias aparecem quando são necessárias. Que o administrador-delegado, que
passará a ser mencionado apenas como engenheiro, tenha pensado em escrever a
história da empresa, talvez faça sair a narrativa do marasmo que a ameaçava e é
o melhor que poderia ter-me acontecido. Veremos se se confirma.” Aqui, mais uma
vez, presente a esperança de viver através do ato da escrita, na luta contra o
marasmo que se instala com a ameaça de morte.
Saramago
morre em 18 de junho de 2010, aos 87 anos de idade.
Para a legião de fãs ardorosos (porque
também há os que o odeiam, quase sempre por sectarismo religioso, além dos que
acham que ele escreve “muito difícil”, sem que façam qualquer esforço para
assimilar a oralidade em sua escrita, inspirada em Pe. António Vieira), este
Alabardas é a comprovação material de que José Saramago não morreu. Cada um de
nós dará o destino que bem desejar a Artur Paz Semedo e Felícia, ao Engenheiro
e sua fábrica, com apenas uma única exigência, a de que a Ética e o respeito
pelo próximo sejam preservados, ou não seria uma história de Saramago.
Maravilha! O cronista deixa claro sua paixão pelo grande Saramago. Seria o caso de chamar seu estilo "saramágico"...
ResponderExcluirA crônica transborda saudade! E esse sentimento também inunda o leitor ao transcorrer as frases...
ResponderExcluirA crônica transborda saudade! E esse sentimento também inunda o leitor ao transcorrer as frases...
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