segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Saramago vive!



             
              Com o coração a saltar pela boca de tamanha emoção, li os três primeiros – e únicos! – capítulos de Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, de José Saramago, livrinho que acaba de ser publicado pela Companhia das Letras. Ter uma bela história para contar, num estilo ímpar, maravilhoso, e precisar interromper a narrativa porque se está a morrer, é de fazer chorar as pedras.
            Que é um livro, isto é, basta olhá-lo, tê-lo nas mãos, ver a capa encimada pelo nome do autor em letras brancas, metade do título em vermelho, que a outra metade Espingardas, espingardas, ficou na contracapa, e se o abrimos, podemos observar que se parece com qualquer outro livro, tem orelhas, até ilustrações ele contém, de autoria do romancista alemão Günter Grass: de fato, é um livro.
            Ao mesmo tempo, um livro não é. Não podemos chamá-lo assim, um livro, são apenas três capítulos que dão partida a uma história em tudo e por tudo promissora, escritos no mais puro estilo saramaguiano – e é o estilo que importa!, é o estilo que emociona!, inconfundível! Eis um bom exemplo, no diálogo entre Artur Paz Semedo e  Felícia, que se encontram separados até o momento:

“O telefone deu três sinais e ela respondeu, Estou, Sou eu, o artur, Já sabia, vi aqui o teu número, Desculpa vir ligar-te a esta hora, Ainda não é tarde, Aconteceu-me uma coisa que gostaria de te falar, Algum problema, perguntou ela, Problema, não direi, mas estou com o espírito confuso, Se isso é por causa de alguma mulher que acabaste de conhecer, desejo-te as maiores felicidades, Qual mulher, qual nada, tenho coisas mais importantes em que pensar, Olha que seria digna de exame essa tua preocupação, pelo menos assim me parece, de quereres que acredite que não tens andado com ninguém depois de eu ter saído de casa, Ande ou não ande, não é da tua conta, não te diz respeito, Muito bem, explica-me então por que tens a cabecinha confusa, Há uma semana fui à cinemateca para ver um filme chamado l`espoir, Também o vi, estive lá anteontem, É uma história comovedora, sobretudo aquela descida da serra de teruel, Custa a segurar as lágrimas, é certo, Eu confesso que chorei, disse artur paz semedo, Já to disse, também eu, disse felícia. Houve um silêncio. Podia-se pensar que estavam contentes por terem partilhado uma emoção tão forte, quem sabe se por coincidência sentados na mesma cadeira do cinema, mas nunca o reconheceriam, fazê-lo seria dar uma mostra de debilidade sentimental de que o outro poderia vir a aproveitar-se. Todo cuidado é pouco com os casais separados.”

O não-livro termina sem ponto final; melhor dizendo, não termina. E o leitor vira a página, vira outra página, outra mais, mais outra, e nada encontra a não ser a nostalgia da ausência do narrador. Sente-se então o peso da morte de José Saramago, a falta que ele nos faz.
            Os três únicos capítulos são seguidos por Anotações feitas pelo escritor, iniciadas em 15 de agosto de 2009, singelas e deliciosas, como esta primeira frase: “Afinal, talvez ainda vá escrever outro livro.”
A partir de uma ideia intrigante – “nunca houve uma greve numa fábrica de armamento” – surge o tema central do romance, e o primeiro nome que surge para o título é Belona, a deusa romana da guerra. Depois veio Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, inspirado em Gil Vicente.
            Há pouco nessas anotações sobre o desenrolar da história, porém, em 16 de setembro do mesmo ano o autor escreve o que viria a ser a frase final do romance: “O livro terminará com um sonoro “Vá à merda”, proferido por ela. Um remate exemplar.” Ela é Felícia, a mulher divorciada do protagonista Artur Paz Semedo, pressuroso funcionário da fábrica de armamentos Belona S.A..
            Em 26 de dezembro, ainda em 2009, Saramago registra em seu computador, com a ironia de sempre: “Dois meses sem escrever. Por este andar talvez haja livro em 2020...” A doença grave impedia-o de escrever, mas ele não perdia a esperança.
            A última anotação data de 22 de fevereiro de 2010, e registra uma nova ideia para o desenrolar da trama: “As ideias aparecem quando são necessárias. Que o administrador-delegado, que passará a ser mencionado apenas como engenheiro, tenha pensado em escrever a história da empresa, talvez faça sair a narrativa do marasmo que a ameaçava e é o melhor que poderia ter-me acontecido. Veremos se se confirma.” Aqui, mais uma vez, presente a esperança de viver através do ato da escrita, na luta contra o marasmo que se instala com a ameaça de morte.
Saramago morre em 18 de junho de 2010, aos 87 anos de idade.
            Para a legião de fãs ardorosos (porque também há os que o odeiam, quase sempre por sectarismo religioso, além dos que acham que ele escreve “muito difícil”, sem que façam qualquer esforço para assimilar a oralidade em sua escrita, inspirada em Pe. António Vieira), este Alabardas é a comprovação material de que José Saramago não morreu. Cada um de nós dará o destino que bem desejar a Artur Paz Semedo e Felícia, ao Engenheiro e sua fábrica, com apenas uma única exigência, a de que a Ética e o respeito pelo próximo sejam preservados, ou não seria uma história de Saramago.
            

3 comentários:

  1. Maravilha! O cronista deixa claro sua paixão pelo grande Saramago. Seria o caso de chamar seu estilo "saramágico"...

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  2. A crônica transborda saudade! E esse sentimento também inunda o leitor ao transcorrer as frases...

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  3. A crônica transborda saudade! E esse sentimento também inunda o leitor ao transcorrer as frases...

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