terça-feira, 19 de agosto de 2014

Reler Cervantes aos 70


D. Quixote e Sancho Pança, por Candido Portinari (1956)

Próximo dos 70, todas as pessoas deviam visitar D. Quixote de La Mancha. Para aqueles que nunca o leram, será uma gratíssima surpresa! Para alguns que já o conhecem, certamente será uma revisitação não menos surpreendente. Este é o meu caso.
E por que lê-lo ou relê-lo em idade mais madura, ou mesmo na velhice? A primeira razão há de saltar aos olhos do leitor, logo nos primeiros capítulos: é quando não mais se tem medo do ridículo. Os aspectos mais trágicos do texto, representados pelo Cavaleiro da Triste Figura, podem revelar a comicidade inevitável contida no ridículo. Antes mesmo de sair para as famosas aventuras, D. Quixote revelara-se inveterado leitor, o que constitui a essência mesma de seus delírios e fantasias. O mesmo pode ocorrer com o leitor mais velho e tomado desde a juventude pelo vício da leitura. (Não me lembro de um dia sequer, nos últimos 50 anos, em que eu não tivesse nas mãos um livro.) Não estou sugerindo que o leitor de hoje seja tomado pela loucura de Quixote. Antes, que ele tenha o privilégio de ter feito da Literatura uma companheira da vida inteira, livre das interpretações acadêmicas e análises morfológicas e sintáticas das obras lidas e relidas.
Passemos à segunda razão. Em idade mais avançada fica mais fácil apreender que a vida não passa de uma ilusão. Aqui, mais uma vez, ficção e realidade se misturam e se fundem, como na vida e na arte. A metáfora dos moinhos de vento torna-se mais clara do que nunca. E Dulcinéia d`El Toboso, vista também como uma miragem.
            Porém, o Cavaleiro Andante não tem nada a perder, está disposto a correr todos os riscos. Esta é a terceira razão para se ler D. Quixote na velhice: nada mais a perder. Outra maneira de dizer a mesma coisa, no tom popularesco do romance cervantino e condizente com a própria vida é O que vier agora é lucro. Sancho Pança, bem mais jovem, não pode compreender esta inclinação de seu amo e a todo custo procura trazer Quixote para uma zona de segurança, o que é recusado com veemência pelo nosso herói. (A despeito disso, na vida é sempre bom ter um Sancho por perto.)
            Agora Quixote já pode lidar com seus fantasmas. Eis o quarto motivo para ler ou reler o livro na velhice. A esta altura, nossos fantasmas tornaram-se companheiros de viagem, podem ser encarados de frente e sem medo, penso até que nem são mais fantasmas. Eles carregam todas as nossas fraquezas e fragilidades e imperfeições e vicissitudes, com a diferença que agora podem ser reconhecidos como tal. Nossos fantasmas são a nossa infância. Por isso D. Quixote parece uma criança.
            Em quinto lugar, há a oportunidade de se aprender a não temer a morte. Melhor a honra preservada, ensina Quixote. Mas que isso não seja fruto da loucura quixotesca, e sim da capacidade de pensar nossa humana finitude. “Viver é muito perigoso”, não cansa de repetir Guimarães Rosa em Grande Sertão. (Não conheço comparação sistemática entre D. Quixote e Grande Sertão; decerto haverá semelhanças, é bem possível. Fica para Eliana Cardoso, especialista em Literatura Comparada.)
            Em sexto lugar, ler dois volumes com 700 páginas cada um, em qualquer idade torna-se um ótimo antídoto contra o imediatismo, a velocidade irrefreável, a instantaneidade do mundo virtual que nos cerca e nos sufoca e nos domina na atualidade. Capítulo após capítulo, a narrativa lenta, às vezes monótona – a andadura cansada de Rocinante –, às vezes agitada, como na vida, nos ensina a ter paciência. Quem sabe ler, pensa; quem pensa, compreende; quem compreende, aprende. Como na escola da vida.
            Por último, e não menos relevante, há o imenso prazer da leitura de Cervantes, simples, clara, quase ingênua, uma permanente conversa bem humorada com o leitor, que se estiver perto dos 70, mergulha na história e delira e alucina e ri e chora com nosso herói. 
           Por inumeráveis razões, D. Quixote de La Mancha espera pela visita do leitor de qualquer idade.


Um comentário:

  1. A crônica é um convite irresistível. Afinal, trata-se do pai de todos os romances. feliz de quem puder reler, e não apenas ler.

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