quinta-feira, 10 de julho de 2014

Os vizinhos


Da série Humor e Morte.

            António e Manuel eram vizinhos de longa data. Passavam-se os anos e a inimizade entre eles crescia assustadoramente, movida talvez por um ódio ancestral, já que ambos, portugueses, tinham parentes ainda residentes nos arredores de Viseu, centro-norte de Portugal. Não se lembravam mais da origem dos desentendimentos ocorridos há pelo menos quarenta anos. Sabiam apenas do ódio mútuo.
            Ambos pensaram muitas vezes em mudar-se, seria um modo de livrar-se do forçado convívio, embora convívio não seja a melhor palavra para expressar aquela relação de permanente conflito, mas apegados as suas casas, construídas em meio a grandes terrenos, praticamente duas chácaras, nenhum deles desejava ceder terreno ao inimigo. Seria admitir a derrota.
            Haviam apelado para a Justiça inúmeras vezes, uma trabalheira danada, gastos absurdos com advogados, intimações e seguidas audiências, e o juiz repetia a frase de sempre, em tom de ironia e deboche, Já sei, briga de vizinhos. António, o mais sensível e ponderado dos dois, mortificava-se com aquelas palavras, sentia-se humilhado, pois Manuel era de fato quem procurava briga. Manuel, talvez de forma inconsciente, nutria-se daquele ódio, transformara aquelas pendengas banais em razão de viver, aposentado que era, sem nada mais o que fazer na vida.
            Exatamente por mais sensível, António era quem mais sofria com a situação. Analisou todas as alternativas possíveis para a solução do conflito – conflito é pouco, o que havia era uma guerra – e chegou à espantosa conclusão de que precisava matar Manuel. Digo espantosa, porque António era homem de bem, incapaz de matar uma aranha caranguejeira que eventualmente invadisse seu terreno, embora tivesse horror às aranhas. Sim, não restava outra alternativa senão matar seu vizinho.
            António consultou os especialistas. Informaram-lhe que o crime precisava ser perfeito, ou ele seria o primeiro incriminado, pois era uma espécie de suspeito natural. Portanto, não podia confiar em ninguém, não podia haver um matador profissional, ele mesmo devia perpetrar o assassinato, sem testemunhas. Nada disso o desanimou. Passou dias e dias arquitetando seu plano, em todos os detalhes.
            Avisou aos familiares e amigos que passaria alguns dias de férias em Portugal e viajou. Após dois dias em Lisboa tomou o voo para Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, usando passaporte falso, onde contratou um negro de dois metros de altura, muito magro e afável, que atendia pelo nome de Jean-Pierre e não compreendia uma palavra do português. Depois de muito custo, chegaram à floresta à margem direita do Rio Congo, a procura do Dendrobates tinctorius, conhecido como Blue poison dart frog, ou rã-dardo-venenosa-azul, um minúsculo sapinho capaz de matar um elefante com seu poderosíssimo jato de veneno. António tinha a esperança de encontrar também alguns bonobos, habitantes deste lado do rio, o que não se concretizou.
            Depois de duas semanas de incessantes buscas, Jean-Pierre, ele também um especialista, encontrou o Dendrobates, próximo a um formigueiro de trinta metros de diâmetro. António estava informado sobre isso: o sapinho alimentava-se de formigas, de onde extraía matéria prima para a elaboração de seu terrível veneno. Em cativeiro, perdia a capacidade de produzir a toxina mortal. Com extremo cuidado, o sapinho foi colocado numa pequena caixa de madeira; numa outra, uma boa ração de formigas. Retornaram a Lisboa, e em seguida ao Brasil, António trazendo Jean-Pierre a tiracolo. Afeiçoara-se ao negro. (Na alfândega brasileira, perguntado se trazia queijo ou bacalhau, António afirmou que nada tinha a declarar.)
            Em casa, sem que ninguém sequer suspeitasse de seu plano, nem mesmo o negro Jean-Pierre, na obscuridade da madrugada, usando luvas de borracha que chegavam até os cotovelos, António colocou o Dendrobates na caixa de correio de Manuel. Dois dias depois, quando a ambulância chegou tocando a sirene à casa do vizinho, não havia mais nada a fazer, apenas constatar a morte de Manuel. O plano fora de um êxito completo.
            António preparava-se para gozar a vida em paz quando um acontecimento aparentemente sem importância chamou-lhe a atenção. Um dos cães do ex-vizinho, um belo pastor belga malinois, apareceu morto no quintal, subitamente e sem causa aparente. Talvez tenha sentido falta do dono, pensou António. A situação tornou-se realmente alarmante quando um de seus próprios cães, um enorme e saudável dogo argentino, apareceu morto de forma semelhante. António solicitou a um veterinário amigo que procedesse a uma necropsia, mas nada de anormal foi detectado nas vísceras do animal.
            Quando o terceiro cachorro foi encontrado morto, António atinou, O Dendrobates assassino está solto no quintal! Chamou Jean-Pierre, explicou-lhe sem maiores detalhes a série daquelas ocorrências, e iniciaram minuciosíssima busca em todo o terreno, a cata do monstro. Como nada tivessem encontrado, a caçada deslocou-se para a casa do falecido vizinho, realizada à noite, nas condições mais adversas, para não levantar suspeitas na viúva. Nada encontraram.
            Uma semana depois, quando numa manhã ensolarada a ambulância entrou na rua de sirene ligada e estacionou três casas adiante da sua, Antônio sentiu forte dor no peito e caiu fulminado.

2 comentários:

  1. Ótimo conto enlaçando boa trama com dose certeira de ironia. A dor no peito é fecho magistral.

    ResponderExcluir