O pai, homem letrado, amante da boa literatura, 25 dias antes do Natal
reuniu os cinco filhos e, cheio de entusiasmo, lançou o desafio, Quero que cada
um de vocês escreva um Conto de Natal, e o vencedor do torneio ganhará como
prêmio as Obras Completas de Machado de Assis.
A verdade é que o pai sonhava com um filho escritor, Pelo menos um,
pensava ele, e os estimulava a todo momento, desde pequenos, dando de presente livros
e mais livros, ele mesmo possuidor de uma bela biblioteca. Na mocidade havia
escrito algumas peças de teatro, para que fossem representadas pelo Grupo da
Juventude Cristã, repletas de ensinamentos morais, de normas do bem viver,
religioso que era, um crente fervoroso. Também arriscara um e outro conto,
nunca publicados. Estava claro que pretendia realizar-se através dos filhos.
O mais velho acabara de completar 18 anos, pensava em ser médico, e
embora apreciasse a leitura, não tinha vocação para escritor. Mesmo assim, por
amor ao pai, sabedor da paixão que movia aquele inesperado torneio, aceitou o
desafio e pôs-se a ruminar uma história edificante.
O segundo filho, nos seus 17 anos, queria ser engenheiro; desde
pequenino brincava de construir estradinhas na areia, por onde passavam
caminhões carregados de pedras e tijolos, com o que ele levantava magníficos
castelos. Por influência do ótimo professor de português do colégio, mais do
que por influência paterna, também era um bom leitor. Precoce em suas escolhas,
lia Dostoievski compulsivamente, o que chegava a preocupar a piedosa mãe.
Aceitou prontamente o desafio do pai.
O terceiro filho, com 16 anos já era um poeta! Você vive no mundo da
lua, meu filho, não cansava de repetir a mãe, A vida não é moleza não, você
precisa ter uma profissão que lhe dê sustento e à sua família, siga o exemplo
de seus irmãos mais velhos, esqueça esta conversa boba do seu pai, escritor
morre à míngua, não tem futuro, ao menos vá estudar inglês, poderá tornar-se
professor de inglês, que já é em si uma profissão rentável. Interminável
ladainha de que se aproveitava a mãe e que sobrava para os dois, pai e filho. O
menino era mesmo apreciador da poesia, Manoel de Barros o poeta preferido, e
quando pediam que ele declamasse um poema, era sempre o mesmo, “Ovo de
lobisomem não tem gema”, e ria do espanto que provocava nos ouvintes. A
despeito deste gosto, nunca lhe passou pela cabeça ser um escritor; talvez professor
de português, o que não confessava à mãe, com medo de uma surra.
O quarto filho, que acabara de completar 15 anos – era uma escadinha,
aquela filharada – ainda não sabia o que gostaria de fazer da vida. Era bom de
bola, cabeça-de-área no time da escola, talvez pudesse profissionalizar-se,
tinha ótima compleição física, era alto, espadaúdo, ágil, inteligente. Seja
pelo tal professor de português, seja pelo pai, seja lá pelo que for, era uma
surpresa que também gostasse de ler, lia tudo que lhe caia nas mãos, desde
Machado e Eça até Paulo Coelho e quadrinhos. Daí a tornar-se escritor, era um longo
e improvável caminho a percorrer.
Prepare-se o leitor, que agora vem a bomba: o quinto filho é uma
menina! Nasceu contra a vontade da mãe, por insistência do pai, que-queria-porque-queria
uma menina, para fechar com graça e meiguice a tal escadinha, ela agora em seus
magníficos 14 aninhos. Como defini-la para o leitor, já impaciente com tão
vasta prole? Maria é da-pá-virada, do-fogãozinho-encerado, apronta-poucas-e-boas,
não-tem-papas-na-língua, todos estes clichês são insuficientes para
descrevê-la. Inteligentíssima, linda de rosto e de corpo – os peitinhos enlouquecem
os colegas da escola, para desespero da mãe – Maria deseja apenas experimentar
a vida, no início de uma adolescência sempre difícil mas que promete muito. O
que ela tem de comum com os irmãos? Difícil de acreditar, mas é verdade: o
gosto pela leitura! Autor predileto? Jack Kerouac, e ela adora dizer que seu
livro preferido é On the road, assim
mesmo, em inglês, pois, pasmem todos, leu-o no original. Por isso ouviu com
atenção a proposta do pai, pensou por alguns minutos, e aceitou-a com
surpreendente entusiasmo.
No dia 25 de dezembro, depois de um caprichado almoço onde foi servida
leitoa assada com farofa de ovos, regada a um bom tinto, a família toda
reunida, o pai abriu cada um dos envelopes lacrados entregues naquela manhã, e
iniciou a leitura dos Contos de Natal, em ordem cronológica, respeitando a
idade de cada filho.
O primogênito discorreu sobre a Família. Escreveu com correção, esmero,
cuidado e delicadeza sobre a importância do Natal como símbolo da preservação
da família, pródigo em ensinamentos de ordem moral e religiosa. Saiu ao pai,
diziam todos. Aplaudidíssimo ao final da leitura.
O futuro engenheiro escolheu como tema central as péssimas condições
materiais em que Jesus veio ao mundo e o Sofrimento que isso acarretou a toda a
Sagrada Família, desde o nascimento até a morte de Jesus. Culpa dos romanos,
capazes de construir um Coliseu que ofertasse circo, sem qualquer preocupação
com o pão dos mais desfavorecidos. Terminou seu escrito dando graças pelo
conforto em que ora viviam, agradecendo aos pais por tudo que até agora lhes
proporcionaram, sem se esquecer da boa educação que recebiam.
Bem, o poeta iniciou seu conto com a frase “Ovo de lobisomem não tem
gema”, para gargalhada geral! Porém, é inegável que desenvolveu o tema de forma
originalíssima, escrevendo sobre o que chamou de o Mistério do Nascimento de
Cristo. O texto tinha a forma de um poema de versos livres, e aqui e ali
notava-se a influência do poeta pantaneiro. Como os dois irmãos que o
antecederam, também foi muito aplaudido.
O nosso futuro craque surpreendeu a todos com uma história singela, bem
contada, dos meninos que nascem paupérrimos e vivem os primeiros anos de suas
vidas literalmente nas ruas – este o paralelo que fazia com a infância de Jesus
Cristo – até que encontram uma escolinha de futebol que lhes oferece a primeira
grande oportunidade de sucesso na vida. Pai e mãe não se entusiasmaram muito, mas
o dia era de festa e o melhor a fazer era bater palmas.
Por fim, o conto da caçula. Eis, na íntegra, o conto de Maria:
"José e Maria já possuíam quatro
filhos, todos homens, quando por insistência do pai resolveram ter mais um
filho, na esperança de que viesse uma menina, quer dizer, José resolveu, Maria
calou-se, como se calava sempre, naquele tempo mulher não palpitava nunca,
muito menos nessas questões misteriosas e delicadas como a quantidade de filhos
de um casal, onde comiam dois, comiam cinco, seis, sete, a trabalheira era a
mesma, mas acontece que quando os quatro filhos homens perceberam que a barriga
de Maria dava sinais evidentes de gravidez, e que José desejava ardentemente uma
filha mulher, revoltaram-se, protestaram aos brados como nunca os pais tinham
visto, não desejavam de forma alguma a intrometida de uma irmã para lhes roubar
o pouco que recebiam, certos de que ela não poderia ajudar na carpintaria do
pai exatamente por ser mulher, enfim, um estorvo, isso é que era, um grande
estorvo uma irmã a mais, e a discórdia foi semeada naquela casa, as discussões
chegaram aos ouvidos da vizinhança, a notícia espalhou-se pelo povoado, agora
era o povo a dar palpites, os pais transtornados com tamanho barulho, os quatro
irmãos irredutíveis, turrões, egoístas, fazendo todo tipo de ameaça, até em
morte falavam, e foi então que Maria, assustadíssima, teve a iluminação! – o
que muitos séculos depois passou a ser considerada por muitos como obra e graça
do Espírito Santo – Maria inconformada com o rumo do desarranjo familiar,
saiu-se com a história de que o filho fora gerado por um Anjo, que José já não
dava mais no couro, e houve quem dissesse que aquela era uma vingançazinha
dela, que não queria mais filho algum, muito menos uma menina, um trastezinho a
lhe puxar o rabo da saia casa afora, mas a história do Anjo pegou que nem
chiclete, espalhou-se como pólvora por todas as gentes, não que José tivesse
gostado, não gostou, ele sabia que o filho era dele, besteira aquilo de Anjo,
onde já se viu?, foi o único que não
gostou da história, porém aquela era a vez dele permanecer calado, por
conveniência pacificadora, e os quatro irmãos resolveram calar-se também diante
do misterioso Anjo, vá lá que viesse dali algum prodígio qualquer, uma menina
fada ou bruxa, tanto faz, na época era tudo a mesma coisa pois já havia a
suspeita de que mulher tinha mesmo pacto com o Demo, assim diziam, mas enfim,
acalmou-se a família, acalmaram-se os vizinhos, e surgiu em lugar das
desavenças uma enorme expectativa silenciosa, cheia de mistério, aguçada quando
a família fugiu com medo das ordens de Herodes, e se fosse um bebê homem?,
corria o boato que estava para nascer o futuro Rei da Galileia, o que se
encaixava perfeitamente com a história do Anjo contada por Maria!, e foi assim
que nasceu o menino Jesus."
Isso mesmo, súbito e inesperado como um raio em céu azul, termina o Conto
de Natal de Maria. O silêncio inunda a sala, não há aplausos, risos não há, o
pai e a mãe boquiabertos, mudos, até que Raimunda, a cozinheira que ainda não
havia entrado na história e que ouviu tudo atrás da porta, gritou lá de dentro,
para alívio geral, Hora do cafezinho com torta de maçã!
Espetacular! Divertidissimo, surpreendente e instigante. Maravilha!
ResponderExcluirQue bom que gostou, Paulo!
ExcluirParabéns professor! Muito bom!
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