Tenho profunda admiração pelo poeta
Ferreira Gullar, gosto muito de seus textos sobre crítica da arte, porém
confesso minha dificuldade para com o cronista Ferreira Gullar. Em minha
despretensiosa opinião, a maioria das suas crônicas é vazia, maçante, insossa,
e quando as leio, custo chegar ao fim, quando chego. De resto, ninguém precisa
ser bom em tudo...
Até que neste último domingo ele
publica Alquimia na quitanda! (1) Um primor, uma delícia de texto, que
tem início de forma surpreendente: 
“ ...as bananas que, às vezes, ficavam sem vender e apodreciam
na quitanda de meu pai. Essas bananas me vieram à lembrança quando escrevi o
"Poema Sujo". Jamais havia pensado nelas ao longo daqueles últimos 30
anos. Mas, de repente, ao falar da quitanda de meu pai, me vieram à lembrança
as bananas que, certo dia, vi dentro de um cesto, sobre o qual voejavam moscas
varejeiras, zunindo. Haverá coisa mais banal que bananas apodrecendo dentro de
um cesto?”
Fui então ao Poema sujo (em Toda Poesia, 9a edição,
José Olympio Ed., 2000), e o grande prazer ao relê-lo:
...
“uma banana
não apodrece do mesmo modo
que muitas bananas
dentro de 
uma tina
            – no quarto de um
sobrado
            na Rua das Hortas, a
mãe
            passando roupa a ferro
– 
fazendo vinagre
            – enquanto o bonde
Gonçalves Dias
            descia a Rua Rio Branco
            rumo à Praça dos remédios
e outros
            bondes desciam a Rua da
Paz
            rumo à Praça João
Lisboa
            e ainda outros rumavam
            na direção da Fabril,
Apeadouro,
            Jordoa
            (esse era o bonde do
Anil
            que nos levava
            para o banho no rio
Azul)
e as bananas 
fermentando
trabalhando para o dono – como disse Marx – 
ao longo das horas mas num ritmo
diferente (muito mais
            grosso) que o do
relógio
fazendo vinagre”
...
            E por aí vai o longo
poema.
            O Ferreira Gullar cronista
continua: 
“Entenderam agora por
que costumo dizer que a arte não revela a realidade e, sim, a inventa? Veja
bem, não é que a banana real não tenha ela mesma seu mistério, sua insondável
significação. Tem, mas, embora tendo, não nos basta, porque nós, seres humanos,
queremos sempre mais. Ou seria esse um modo de escapar da realidade
inexplicável? Se pensamos bem, a banana inventada pertence ao mundo humano, é
mais nós do que a banana real. E não só isso: a realidade mesma é impermeável,
enquanto a outra, feita de palavras, amolda-se a nossa irreparável insatisfação
com o real.”
Somos, pois, feitos de memória! Mas não
somente da memória de fatos e sentimentos reais; somos feitos das memórias que
inventamos para nós mesmos, ao longo de nossas vidas. Passamos a acreditar
nelas, porque de fato, são tão ou mais verdadeiras que as reais. 
 
 
Palavra justo quando literária ou poética
ResponderExcluirSe finge incompleta
Mas nas entrelinhas
Manda uma banana para o que apodrece.
A vida mesma,
Em renovação. Inquieta!
Lindo o seu poema, Paulo! O blog agradece, honrado!
ExcluirÓtimos a crônica e o poema do samideano Paulo. Este blog é o máximo! Quanto ao Gullar, só um verdadeiro poeta consegue extrair pura poesia de bananas a apodrecer. A força das palavras, transmudando o banal e transcendental!
ResponderExcluir... em transcendental!
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