A crônica do Hélio Schwartsman no
Estadão de hoje, Limites do legalismo
(1), está primorosa a tal ponto que não
resisto ao desejo de pensar um pouco mais sobre o assunto neste blog. Tudo
começou com o rebaixamento da Portuguesa para a série B do Brasileirão (depois
dizem que futebol não é coisa séria...), pela aplicação pura e simples do regulamento.
Schwartsman pergunta: “Cumprir
a lei em todas as ocasiões nos levaria a um mundo melhor?” E responde: “Tanto
por razões teóricas como práticas, o legalismo estrito é uma posição
incoerente. ...É impossível traduzir para um conjunto finito de regras
discretas (as leis) a totalidade dos comportamentos que desejamos promover.”
Em outras palavras, é
preciso sempre levar em conta as circunstâncias.
Deixo por instantes o
futebol de lado (embora, no caso em questão, continue torcendo pela Lusa) para
aplicar este conceito a um dos sentimentos humanos mais comuns, o sentimento de
culpa.
A culpa parece algo
maior, universal mesmo. A Igreja Católica, espertamente, aproveitou-se dela
para criar dois poderosos mecanismos de controle sobre seus fieis. O primeiro é
o pecado original – você é culpado por ter nascido – e só poderá ficar livre
deste pecado através da Igreja. O segundo é o eficientíssimo sistema da
confissão: você peca, eu perdoo, você fica autorizado a pecar novamente, mas
agora está nas minhas mãos.
Mas voltemos à culpa
que não leva em conta as circunstâncias. Um certo pai de família, homem honrado
e ainda jovem, ofereceu aos amigos uma festa de aniversário em sua própria
casa. Por isso, seu cão permaneceu preso durante todo o dia, para não incomodar
os convidados. À noite, terminada a festa, com pena do pobre animal, embora
cansado pela trabalheira do aniversário, resolveu levá-lo para um passeio. O
animalzinho saiu latindo e pulando de alegria. Pelas tantas, num grande terreno
baldio, o dono soltou o cão da coleira, para que ele pudesse exercitar-se,
depois do longo dia de cativeiro. O animal disparou em direção à pista, e ao
tentar atravessá-la, foi atropelado e morreu. O homem passou longo tempo
remoendo torturante sentimento de culpa, Por que fui soltá-lo, Porque fui
soltá-lo?, repetia sem poder pensar em outra coisa.
Em nenhum momento o
homem levou em consideração as razões pelas quais levou o cão para passear,
embora cansado da festa; não pensou na necessidade do animal em distender os
músculos; na felicidade de poder correr num terreno baldio, depois de um dia de
prisão; no próprio amor que nutria pelo animal de estimação. Não havia espaço em
sua mente para pensar as circunstâncias, completamente tomada pelo sentimento
de culpa.
Em lugar de absolvição,
precisamos mesmo é de aprender a analisar o mundo em que vivemos, reconhecer
nossas limitações, levar em conta as circunstâncias que nos rodeiam, a cada
passo que damos nessa vida.
Schwartsman, com a lucidez costumeira,
termina sua crônica reafirmando que, “Gostemos ou não, definir as situações em
que devemos ignorar leis é tão importante quanto aplicá-las. Se não fosse
assim, poderíamos substituir os juízes por iPads com um software que decidiria
a pena a partir de uma descrição do caso. Poucos gostariam de ser julgados
dessa forma.”
Por isso julgar é tão difícil, quase impossível. Até o Fernandinho Beira Mar pode ter suas atenuantes. Assim, a injustiça é inerente a este mundo. O homem é injustiçado a priori. Vai ver, ele merece...
ResponderExcluirO que você chama de injustiça, Paulo, é o que chamo de falta de sentido da vida, ou o sentido da própria vida.
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