quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Futebol, culpa e circunstâncias


A crônica do Hélio Schwartsman no Estadão de hoje, Limites do legalismo (1), está primorosa a tal ponto que não resisto ao desejo de pensar um pouco mais sobre o assunto neste blog. Tudo começou com o rebaixamento da Portuguesa para a série B do Brasileirão (depois dizem que futebol não é coisa séria...), pela aplicação pura e simples do regulamento.
            Schwartsman pergunta: “Cumprir a lei em todas as ocasiões nos levaria a um mundo melhor?” E responde: “Tanto por razões teóricas como práticas, o legalismo estrito é uma posição incoerente. ...É impossível traduzir para um conjunto finito de regras discretas (as leis) a totalidade dos comportamentos que desejamos promover.”
            Em outras palavras, é preciso sempre levar em conta as circunstâncias.
            Deixo por instantes o futebol de lado (embora, no caso em questão, continue torcendo pela Lusa) para aplicar este conceito a um dos sentimentos humanos mais comuns, o sentimento de culpa.
            A culpa parece algo maior, universal mesmo. A Igreja Católica, espertamente, aproveitou-se dela para criar dois poderosos mecanismos de controle sobre seus fieis. O primeiro é o pecado original – você é culpado por ter nascido – e só poderá ficar livre deste pecado através da Igreja. O segundo é o eficientíssimo sistema da confissão: você peca, eu perdoo, você fica autorizado a pecar novamente, mas agora está nas minhas mãos.
            Mas voltemos à culpa que não leva em conta as circunstâncias. Um certo pai de família, homem honrado e ainda jovem, ofereceu aos amigos uma festa de aniversário em sua própria casa. Por isso, seu cão permaneceu preso durante todo o dia, para não incomodar os convidados. À noite, terminada a festa, com pena do pobre animal, embora cansado pela trabalheira do aniversário, resolveu levá-lo para um passeio. O animalzinho saiu latindo e pulando de alegria. Pelas tantas, num grande terreno baldio, o dono soltou o cão da coleira, para que ele pudesse exercitar-se, depois do longo dia de cativeiro. O animal disparou em direção à pista, e ao tentar atravessá-la, foi atropelado e morreu. O homem passou longo tempo remoendo torturante sentimento de culpa, Por que fui soltá-lo, Porque fui soltá-lo?, repetia sem poder pensar em outra coisa.
            Em nenhum momento o homem levou em consideração as razões pelas quais levou o cão para passear, embora cansado da festa; não pensou na necessidade do animal em distender os músculos; na felicidade de poder correr num terreno baldio, depois de um dia de prisão; no próprio amor que nutria pelo animal de estimação. Não havia espaço em sua mente para pensar as circunstâncias, completamente tomada pelo sentimento de culpa.
            Em lugar de absolvição, precisamos mesmo é de aprender a analisar o mundo em que vivemos, reconhecer nossas limitações, levar em conta as circunstâncias que nos rodeiam, a cada passo que damos nessa vida.
Schwartsman, com a lucidez costumeira, termina sua crônica reafirmando que, “Gostemos ou não, definir as situações em que devemos ignorar leis é tão importante quanto aplicá-las. Se não fosse assim, poderíamos substituir os juízes por iPads com um software que decidiria a pena a partir de uma descrição do caso. Poucos gostariam de ser julgados dessa forma.”

2 comentários:

  1. Por isso julgar é tão difícil, quase impossível. Até o Fernandinho Beira Mar pode ter suas atenuantes. Assim, a injustiça é inerente a este mundo. O homem é injustiçado a priori. Vai ver, ele merece...

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  2. O que você chama de injustiça, Paulo, é o que chamo de falta de sentido da vida, ou o sentido da própria vida.

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