quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Maria e seu legado


Há um mês e meio postei neste blog algum comentário sobre o novo livro de Colm Tóibín, autor irlandês, intitulado O testamento de Maria (Companhia das Letras, 2012), com uma bela tradução de Jório Dauster. Chamei-o de espetacular. (1)
            Poucos dias depois, mais precisamente na edição de 23 a 25 de agosto do ótimo suplemento EU & Fim de Semana, do Valor Econômico, o senhor Rodrigo Petrônio publicou resenha do citado livro, desancando-o (é o mínimo que posso dizer...). Não restou pedra sobre pedra, na forma e no conteúdo: o livro foi sumariamente desqualificado.
            Confesso a minha perplexidade, que só não foi maior porque pude ler nas entrelinhas o forte sentimento religioso do resenhista, a influenciar de forma decisiva a leitura do livro e, em consequência, seu juízo crítico de valor: uma verdadeira heresia! Cheguei a pensar em escrever para o jornal, ao menos para registrar um ponto de vista diferente, mas desisti: heresia não se discute. Para os heréticos, a morte na fogueira e o fogo eterno do Inferno.
            Ouvi opiniões de amigos que reputo abalizadas, esperei que alguns deles lessem o livro, e todos foram unânimes em elogiá-lo. Até que a edição de 21 de setembro último da Folha de São Paulo traz a resenha de Luiz Felipe Pondé, com o título “Crítica: ficção mostra Jesus como jovem ousado, inteligente e vaidoso”.
            Vejamos o que diz Pondé:

“O livro é uma pérola de ficção, tendo Maria como narradora das origens do cristianismo. Realiza de modo pleno tudo o que os títulos ruins sobre Jesus tentam, mas não conseguem. Escandaliza, de certa forma, mas com a classe de quem de fato surpreende pela criação dramática. A Maria que emerge das páginas é interessantíssima, não a santa "mater misericordiae", mas uma mulher que se bate contra a "criação" de uma seita ao redor da trágica história de seu filho.”

Avaliação final do livro pelo resenhista: Ótimo. (2)

Foi então que me lembrei de Caravaggio!

A morte da Virgem

Um quadro do pintor sobre a Virgem Maria foi-lhe encomendado para a capela do advogado Cherubini, em Santa Maria della Scala, em Trastevere. Depois de pronto, poucos puderam ver a Morte da Virgem, rapidamente retirado da capela pelos “santos” padres. Por sorte, segundo a opinião respeitabilíssima de Roberto Longhi (1890-1970), autor do célebre Caravaggio (Cosac Naify, 2012), o quadro foi colocado a salvo na galeria do Duque de Mântua, graças à sugestão de ninguém menos que Peter Paul Rubens.
Por que razão uma obra prima de tão grande originalidade e beleza do já célebre Caravaggio seria rejeitada?
Por razões religiosas e doutrinárias. Caravaggio pintou Maria morta. Definitivamente morta. Mortíssima. Para alguns, ainda segundo Longhi, o retrato era o de uma cortesã das relações do pintor; para outros, o artista faltou com o decoro ao retratar Maria inchada e com as pernas descobertas. O próprio Longhi afirma: “O quadro parece mostrar os lamentos pela morte de uma plebeia da periferia, no quartinho de aluguel, separado no máximo pelo toldo sanguíneo que pende das traves do teto, e sem outras peças além de uma cama, uma cadeira e a bacia para os lenços molhados. Quase uma cena de albergue noturno.”
Penso que a heresia de Caravaggio foi pintar Maria definitivamente morta, e portanto, humana e mortal.
E acontece até hoje, com Saramago, em O evangelho segundo Jesus Cristo, com Tóibín, em O testamento de Maria. O viés religioso não é uma boa maneira de se olhar uma obra de arte.




Um comentário:

  1. Muito bom, André. Além de tudo, respondendo ao jornal dificilmente teu comentário seria publicado na íntegra. O editor iria cortar o Caravaggio, ao menos. Melhor aqui.

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