– Não sei onde vi que...
Esta tornou-se uma frase recorrente em minhas conversas,
tanto eu como as pessoas de meu convívio a repetimos a todo momento, para
introduzir qualquer tema ou assunto. Por exemplo:
– Não sei onde vi que... o número de casos de
poliomielite na Síria e em Israel tem aumentado, depois de anos de erradicação
da doença.
O assunto nem precisa ser tão relevante assim:
– Não sei onde vi que... o Palmeiras vai contratar o
Messi para a próxima temporada!
Resta pouca dúvida de que isso é fruto do massacre de
informações a que somos submetidos cotidianamente, pelas mais diversas mídias,
das quais a Internet é a campeã. Fica a notícia – quando fica –, vai-se a
fonte.
Como tudo na vida, há prós e contras para o fato em
questão. Comecemos pelos contras. Se perdemos a referência, corremos o risco
das afirmações falsas, das distorções, das deturpações, das mentiras mesmo.
Faltar com a referência é correr o risco de perder a credibilidade.
Há um recurso muito utilizado, especialmente por aqueles
cuja credibilidade já se encontra consolidada para a opinião pública, os chamados
famosos, que afirmam sem medo de
errar:
– Alguém já disse que...
Pronto, isso é o suficiente para que o ouvinte ou leitor
acreditem piamente na informação prestada. Um certo psicanalista, do qual já
não me lembro o nome, só me lembro de seu narcisismo exagerado, gostava de
acrescentar em tais circunstâncias:
– E se ele não disse, Eu estou dizendo agora! (E o ouvinte permanecia na eterna dúvida
sobre a verdadeira referência ou afirmação original.)
Para o cientista, a ausência de referências é
imperdoável. O próprio rigor do pensamento científico advém das “verdades” científicas
preestabelecidas, o que não quer dizer que tais verdades não possam ser completamente
modificadas com o passar do tempo.
A favor do fato que estamos tentando compreender, a
ausência ou imprecisão das referências, temos o exercício de liberdade de quem
fala ou escreve, a certeza de que estamos inserindo algo de pessoal na
afirmação que fazemos. Isso chama-se criatividade, é próprio do espírito
humano! Digo Eu vi em algum lugar..., mas na realidade estou me referindo a
alguma coisa que eu sinto ou penso. E muitas vezes não tenho consciência se vi
mesmo em algum lugar, ou se o que digo é de exclusiva responsabilidade de minha
mente.
Isso funciona muito bem quando se escreve ficção. Se o
escrito permanece na gaveta por um certo tempo, quando se relê o texto surge a
pergunta Fui eu mesmo quem escreveu isso? É quando se confundem ficção e
realidade.
Vi na televisão (e cito a referência porque foi hoje que
eu vi) o grande jornalista Geneton de Moraes Neto afirmar que, infelizmente ele
não conhecia o autor da frase de que tanto gosta: “Das coisas menos importantes
da vida, o futebol é a mais importante.” Em volta, todos riram, e eu também.
Que se dane o autor da frase!
Bem, então como ficamos diante da incerteza gerada pela
falta de referências? Se nosso interlocutor é ouvinte atento (vale dizer também
leitor atento), ele poderá
discriminar entre o verdadeiro e o falso, ou ao menos levantar o benefício da
dúvida, o que é sempre saudável. Se o ouvinte ou leitor têm como funcionamento
mental predominante o pensamento mágico ou religioso (nada contra as
Religiões), tal discriminação torna-se difícil de ocorrer, se não impossível.
Vende-se e come-se gato por lebre.
Repito, ao cientista cabe apenas o pensamento científico;
ao filósofo, o modelo filosófico. Mas se a conversa é de botequim – e como às
vezes é gostosa uma conversa de botequim! – tanto faz se o frango à passarinho
é lebre, gato, coelho, ou, na China e Tailândia, até cachorro. Aliás, não sei
onde vi que... estão servindo carne de cavalo na Europa.