Em homenagem ao meu pai.
Por influência
paterna, provavelmente, sempre admirei Guilherme de Almeida, em especial por
seus haicais. Guilherme de Andrade de Almeida nasceu em Campinas
em 24 de julho de 1890, e faleceu em São Paulo
em 11 de julho de 1969. Foi advogado, jornalista, crítico de
cinema, poeta,
ensaísta e tradutor. Participou da
Semana de 22, exercendo influente papel na poesia modernista brasileira.
Considerado
um dos incentivadores do desenvolvimento do haicai brasileiro, criou modelo
próprio para este tipo de poesia, de origem japonesa, basicamente composta de
um terceto, com 5 sílabas tônicas no primeiro verso, 7 no segundo e 5 no
terceiro. Guilherme de Almeida acrescentou as rimas entre o primeiro e terceiro
versos, e rimas internas entre a segunda e a última sílabas tônicas do segundo
verso. O modelo torna-se facilmente compreensível quando representado pelo
esquema:
____________
x
__ o
______________ o
_____________
x
Tal
modelo, por sua rigidez de forma, a exigir rigorosa disciplina do poeta, foi
rejeitado por muitos, sob a alegação de que não era este o espírito do haicai
japonês. Por outros foi enaltecido e ganhou fama. Porém, quem há de discordar
da beleza poética contida nos seguintes versos?
O haicai
Lava,
escorre, agita
a areia. E
enfim, na bateia,
fica uma
pepita.
Ou nesses outros:
O pensamento
O ar. A
folha. A fuga.
No lago, um
círculo vago.
No rosto,
uma ruga.
Ou ainda:
Infância
Um gosto de
amora
comida com
sol. A vida
chamava-se
“Agora”.
Tamanho
o entusiasmo de Guilherme de Almeida por esta nova forma poética, que ele acaba
por registrar em Os meus haicais, uma
verdadeira declaração de amor ao gênero: “Vinte
anos de poesia – uns 30 livros de versos escritos e uns 20 publicados –
levam-me hoje à conclusão calma (que não é uma negação à minha nem um sarcasmo
à obra dos outros) de que não há ideia poética, por mais complexa, que, despida
de roupagens atrapalhantes, lavada de toda excrescência, expurgada de qualquer
impureza, não caiba escrita e suficientemente, em última análise, nas 17
sílabas de um haicai.”
Outra novidade
atribuída a Guilherme de Almeida foi a introdução de um título para o haicai. E
chego então à razão desta crônica.
Isso que se
convencionou chamar de abrasileiramento do haicai teve, e continua tendo, suas
consequências. No primeiro exemplo intitulado O haicai, a palavra pepita que serve de fecho ao poemeto cai como
uma pérola, como que ofertando ao leitor belíssima definição de haicai: pequeno
e precioso como uma pepita de ouro! Mas só é possível associar o terceto à arte
do haicai se o leitor considerar o título. No segundo haicai, O pensamento, o título nada acrescenta,
é dispensável, e se é dispensável é porque está sobrando. No terceiro, Infância, ele acrescenta o elemento
temporal, que empresta particular sentido ao terceto.
Nem sempre isso funciona
assim tão bem... Tomo como exemplo o seguinte poema:
Desfolha-se a rosa:
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
Almeida capta lindamente o fugaz momento
de transformação, no qual a rosa perde seu encanto, pois que este é transferido
para o chão, no mais puro espírito do haicai. Não há qualquer dicotomia
moralista do tipo certo-errado, o poeta tão somente coloca o leitor diante de
uma manifestação da Natureza.
Eis
que o autor resolve dar-lhe um título, e o faz com extrema infelicidade: Caridade. E no afã de explicar o poema
(o inexplicável) aos “não familiarizados
com o espírito e a forma da exígua novidade”, segundo suas próprias
palavras, acrescenta: “A flor, que se
desfolha, é bem uma lição moral de alta caridade: dir-se-ia que ela se despe do
que é seu, que ela toda se dá à terra humilde, para que o pobre chão, a seus
pés, pense que também é capaz de florir.” (Haicais completos, Aliança
Brasil-Japão, 1996.) Penso que o título não ajuda, muito menos os comentários.
O haicai, com aquele título, foi transformado em sermão moralista, piegas,
antinatural, pois não há lição de moral na Natureza, muito menos caridade. A
terra não é humilde ou arrogante, pois estas são qualidades humanas. Diz-se que
um chão é pobre quando não contém os nutrientes necessários a uma determinada
cultura, e assim mesmo, boas uvas crescem de parreiras plantadas no duro cascalho
arenoso. O chão não pensa, é chão apenas.
Não é disso que se
alimenta a poesia.
Paulo
Franchetti, poeta e pesquisador do haicai, afirma categoricamente que “o título empobrece os textos, pois determina
a direção da leitura ou força uma decifração metafórica do terceto que nomeia.”
(Haicais completos, Aliança Brasil-Japão, 1996). De fato, isso pode ocorrer.
Mas na composição intitulada Velhice,
do mesmo Guilherme de Almeida, penso que o título acrescenta, ou clareia uma ideia,
sem qualquer perda do efeito poético, embora não seja absolutamente
indispensável:
Uma folha
morta.
Um galho no
céu grisalho.
Fecho a
minha porta.
Meu
ponto de vista, portanto, é que o título pode ajudar, atrapalhar, pode ser
indiferente, bem como essencial, a depender do engenho e arte do poeta. Até
mesmo para o grande Guilherme de Almeida, cognominado Príncipe dos Poetas
Brasileiros, com todo o meu respeito e admiração.
Cultivemos, pois, o
haicai!
Muito pertinente, muito bem posto.
ResponderExcluirTambem adoro os haicais rimados de Guilerme de Almeida. Guardo com carinho a coleção de capa amarela, unica herança material do pai.
Difícil é arte de fazer haicai: ourivesaria poética pura. Sua crônica é uma aguda preciosidade. Aplausos e abraços meus, André! :)
ResponderExcluirCoincidência. Também pelo meu pai, conheci Guilherme de Almeida. Prefiro seus sonetos, em particular o de número 32.
ResponderExcluirhttp://extratodomiolo.com/2012/10/29/cuca/