Recentemente descobrira o que
a mantinha viva, o que lhe dava forças para continuar vivendo.
Fora
trazida de trem para o campo – jamais esqueceria aquele dia gelado de dezembro,
véspera de Natal – há quase um ano. Em poucos dias o acontecimento faria
aniversário, brincava consigo mesma, um ano de sobrevivência, real motivo de
comemoração, pois só ela poderia saber o significado daquela experiência, o
fato de permanecer viva, de corpo e alma, durante todo aquele tempo.
Ainda era algo difícil de pensar, e bem mais difícil de
transmitir por palavras. Podia encarar os fatos em si, esse não era o problema.
A dificuldade residia em compreender algo que não se mostrava claramente, uma
coisa que se mostrava pelo seu avesso, o sentimento obscuro do contrário, do não
ser. Como o negativo de uma fotografia, que apenas pode ser devidamente apreciada
depois de revelada no papel. O negativo existe, tem vida própria, com suas
especificidades, mas é difícil de ser observado e descrito em seus pormenores,
ao menos para os não especialistas. Pois o que a mantinha viva, agora sabia,
era algo parecido com o negativo de uma fotografia. Ela não esperava por um
determinado acontecimento; ao contrário, esperava ansiosamente por um não
acontecimento.
O marido, que chegou com ela ao campo, desapareceu depois
de três meses. Ela recebeu notícias clandestinas dele por homem com quem ele
que havia compartilhado o catre de madeira sem colchão desde a chegada ao
campo. Ela sabia bem o significado da palavra desaparecido. Desaparecimento é o
negativo da presença, pensou, obcecada com a tal metáfora. A fotografia
revelada, ou seja, o positivo da imagem, a morte, não pode ser encarada no
campo. Então fala-se em desaparecimento, o negativo da realidade.
Restara-lhe o filho homem, já criado, agora com 23 anos,
que ela acreditava – precisava acreditar – vivesse escondido em alguma parte do
país.
Reconhecia que tivera muita sorte; logo que chegou foi
reconhecida por antiga colega de escola, há quatro anos no campo – uma
sobrevivente com experiência! –, de quem pouco se lembrava, e que resolveu
protegê-la, ela nunca soube por quê. A amiga conseguiu-lhe um posto de ajudante
na mesma função que ela desempenhava, a de coordenar e orientar o desembarque
dos prisioneiros assim que evacuados dos vagões, tarefa que os guardas evitavam
para não entrarem em contato com o desespero estampado no rosto daqueles que
chegavam. Havia também o problema do cheiro. Os trens chegavam uma ou duas
vezes por semana. Tratava-se de função diferenciada no campo e que oferecia,
portanto, alguns privilégios, como a ração suplementar de proteínas todos os dias,
além de agasalhos mais grossos e sapatos melhores. Era o que lhe mantinha vivo
o corpo.
Ao contrário do que se poderia supor, ela aprendera a
gostar do trabalho. Ao contrário do que se poderia supor, ela não evitava o
olhar desesperado dos prisioneiros, pois até os encarava de frente. Ao contrário do que se poderia supor, não se
importava em sentir neles o cheiro da morte. Desde que o olhar e o cheiro não
fossem de seu filho.
A não chegada do filho – o negativo de um acontecimento –
mantinha-lhe viva a alma. Por quanto tempo?
Que texto forte, áspero! Exala bem a sobrevivência por um fio
ResponderExcluirQualquer autor se sente gratificado quando o leitor sente exatamente o que ele desejou transmitir.
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