quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O negativo


Recentemente descobrira o que a mantinha viva, o que lhe dava forças para continuar vivendo.
Fora trazida de trem para o campo – jamais esqueceria aquele dia gelado de dezembro, véspera de Natal – há quase um ano. Em poucos dias o acontecimento faria aniversário, brincava consigo mesma, um ano de sobrevivência, real motivo de comemoração, pois só ela poderia saber o significado daquela experiência, o fato de permanecer viva, de corpo e alma, durante todo aquele tempo.
            Ainda era algo difícil de pensar, e bem mais difícil de transmitir por palavras. Podia encarar os fatos em si, esse não era o problema. A dificuldade residia em compreender algo que não se mostrava claramente, uma coisa que se mostrava pelo seu avesso, o sentimento obscuro do contrário, do não ser. Como o negativo de uma fotografia, que apenas pode ser devidamente apreciada depois de revelada no papel. O negativo existe, tem vida própria, com suas especificidades, mas é difícil de ser observado e descrito em seus pormenores, ao menos para os não especialistas. Pois o que a mantinha viva, agora sabia, era algo parecido com o negativo de uma fotografia. Ela não esperava por um determinado acontecimento; ao contrário, esperava ansiosamente por um não acontecimento.
            O marido, que chegou com ela ao campo, desapareceu depois de três meses. Ela recebeu notícias clandestinas dele por homem com quem ele que havia compartilhado o catre de madeira sem colchão desde a chegada ao campo. Ela sabia bem o significado da palavra desaparecido. Desaparecimento é o negativo da presença, pensou, obcecada com a tal metáfora. A fotografia revelada, ou seja, o positivo da imagem, a morte, não pode ser encarada no campo. Então fala-se em desaparecimento, o negativo da realidade.
            Restara-lhe o filho homem, já criado, agora com 23 anos, que ela acreditava – precisava acreditar – vivesse escondido em alguma parte do país.
            Reconhecia que tivera muita sorte; logo que chegou foi reconhecida por antiga colega de escola, há quatro anos no campo – uma sobrevivente com experiência! –, de quem pouco se lembrava, e que resolveu protegê-la, ela nunca soube por quê. A amiga conseguiu-lhe um posto de ajudante na mesma função que ela desempenhava, a de coordenar e orientar o desembarque dos prisioneiros assim que evacuados dos vagões, tarefa que os guardas evitavam para não entrarem em contato com o desespero estampado no rosto daqueles que chegavam. Havia também o problema do cheiro. Os trens chegavam uma ou duas vezes por semana. Tratava-se de função diferenciada no campo e que oferecia, portanto, alguns privilégios, como a ração suplementar de proteínas todos os dias, além de agasalhos mais grossos e sapatos melhores. Era o que lhe mantinha vivo o corpo.
            Ao contrário do que se poderia supor, ela aprendera a gostar do trabalho. Ao contrário do que se poderia supor, ela não evitava o olhar desesperado dos prisioneiros, pois até os encarava de frente.  Ao contrário do que se poderia supor, não se importava em sentir neles o cheiro da morte. Desde que o olhar e o cheiro não fossem de seu filho.
            A não chegada do filho – o negativo de um acontecimento – mantinha-lhe viva a alma. Por quanto tempo?

2 comentários:

  1. Que texto forte, áspero! Exala bem a sobrevivência por um fio

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    1. Qualquer autor se sente gratificado quando o leitor sente exatamente o que ele desejou transmitir.

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