quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

a metafísica perdida



às 6 da tarde, invariavelmente
o rádio tocava a Ave Maria de Schubert
o menino ouvia da mãe
esta é uma hora sagrada, meu filho
em que os anjos veem à Terra
para nos proteger do Mal
e o menino, crédulo, contrito
escutava a belíssima música

no Dia das Mães, invariavelmente
o menino ouvia da mãe
este é um dia sagrado, meu filho
em que os anjos veem à Terra
para proteger as mães e seus filhos
para que as famílias vivam em paz
e o menino ouvia, crédulo, contido
as sábias palavras da mãe

no Dia de Natal, invariavelmente
o menino ouvia da mãe
não há dia mais sagrado, meu filho
Jesus veio à Terra para nossa redenção
para perdoar nossos pecados
à medida que perdoamos nossos devedores
e o menino ouvia, crédulo, a mãe
protetora a que tudo sabia

o menino cresceu, inevitavelmente
e descobriu que o vespertino ângelus
variava segundo o fuso horário
o dia das mães não era o mesmo em cada país
muito menos o Natal, inexistente para tantos
e à medida que foi descobrindo o ledo engano
em que a mãe vivia, não deixou de amá-la
nem tentou dissuadi-la dos enganos

deixou de ser menino, finalmente
trocou o conforto das ilusões
pela crua realidade do mundo
descobriu que não ganhava com a troca
porém, fazer o quê, se as fantasias
já não lhe alimentavam a alma
e que o sentido da vida era apenas
tão somente a falta de sentido da vida

Um comentário:

  1. Muito boa, quantos aspectos neste escrito conciso: infância que tudo crê, conforto da segurança das palavras da mãe, a passagem para o adulto com a insegurança da vida e este final real.

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