A voz grossa e entusiasmada do Professor Afonso reboava na
sala, para admiração dos alunos, respeitosos, meninos ainda cursando o ginásio,
diante da autoridade inquestionável do melhor professor da Escola. Prosseguia o
brilhante professor da língua mãe, a última flor do Lácio, gostava de repetir:
Não se pode dizer que o Demônio tenha lábios, não fica bem, ele tem beiços! E
que beiços! Já uma donzela, não ponham beiços nela, pois ela tem lábios... Tal
qual Iracema, a virgem dos lábios de mel!
E o menino guardou o ensinamento como quem guarda joia rara:
cada palavra em seu lugar. Ao longo da vida de menino, depois adolescente, foi
compondo variações sobre o tema
:
qualquer palavra tem seu lugar;
:
todas as palavras são usáveis, basta colocá-las em seu devido lugar;
:
não há palavras boas nem más, melhores ou piores, só precisam estar no lugar
adequado;
: até
mesmo o palavrão tem seu lugar;
:
a força da palavra no lugar certo pode ressuscitar um morto;
:
compete a cada um de nós escolher a palavra certa para o lugar certo, num
determinado momento;
: não
é preciso ter medo das palavras;
:
a palavra é tudo.
A pedagogia do exemplo é mesmo a
melhor forma de ensinar, se não a única. O menino tornou-se professor. Desejava
repartir a joia rara tão bem guardada com os meninos de agora: pensar é
utilizar-se bem da linguagem. E sempre que podia, lá vinha ele com o ditado do
velho Afonso: Lábio é lábio, beiço é beiço! Cada vez mais, apaixonava-se pelas
palavras. Tornou-se leitor fervoroso dos clássicos, e também dos modernos e
contemporâneos, dentre estes Guimarães Rosa e Manoel de Barros, ambos
inventores, dizia o professor. De Rosa, encantava-se com as primeiras palavras
do Grande Sertão:
“– Nonada. Tiros
que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.”
Apreciador sensível de poesia, certa vez leu em Matéria de
poesia, de Manoel de Barros:
“Todas as
coisas cujos valores podem ser
disputados no
cuspe à distância
servem para a
poesia.”
E
pensou: Qualquer palavra serve para a poesia.
Por puro prazer, esmerava-se no preparo das aulas, tanto no
conteúdo como na forma, e principalmente na forma, garimpeiro cuidadoso na
escolha de cada palavra, para que as ideias fossem claramente expressas e os
ouvintes pudessem guardá-las para sempre. De repente, em meio a uma fala séria
e compenetrada, lá vinha ele com um palavrão, altissonante PUTA-QUE-O-PARIU a
ecoar pela sala (pois não tolerava aluno sonolento que não estivesse
aproveitando aquele momento), para espanto e indisfarçável gozo dos meninos,
agora todos despertos: O professor também fala palavrão, comentavam, entre
risinhos agitados. (Houve até caso de reclamação por parte de mãe assaz
virtuosa: Este professor está desencaminhando meu filho! O diretor da Escola,
que bem conhecia a competência do professor, arquivou a queixa, também ele
adepto do Lábio é lábio...). Suas aulas, portanto, tornaram-se
concorridíssimas, a sala sempre cheia, entusiasmados aplausos ao final. Tornou-se,
é certo, um bom professor, às custas de estudo, empenho e alguma arte.
Passaram-se os anos, aposentou-se o
professor. Bem verdade que sentia falta da sala de aula e daqueles meninos que
chegavam todos os anos com a mesma idade, enquanto ele ficava, a cada ano, um
ano mais velho. Quando os colegas solicitaram que continuasse ministrando uma
ou duas aulas por semestre, a título de colaboração com os professores, e para
que os estudantes não ficassem completamente privados de seus ensinamentos, de
pronto ele aceitou. Assim, por mais algum tempo, o professor dirigia-se à
Escola eventualmente, para prestar sua colaboração, e nem é preciso dizer que
de forma graciosa. Talvez, ele pensava, sentisse culpa por ter se aposentado,
tão carentes e necessitados os meninos de agora.
Alguma coisa, porém, vinha mudando
nos últimos semestres, percebia o professor. E para pior. Suas aulas já não
causavam o impacto de antes. Aplausos, nem pensar. O palavrão já não despertava
curiosidade e excitação. O entusiasmo dos ouvintes diminuía a cada ano. Reinava
inexplicável apatia entre os estudantes. Até que algo impensável ocorreu em
sala de aula, impensável porque aquilo o professor nunca pudera tolerar, não
com ele: que os alunos conversassem enquanto ele falava. Ele tomava o fato como
algo pessoal: A aula não está a contento, o conteúdo deve estar equivocado,
falho na forma, a aula está chata, maçante, vazia, letra morta, incoerente,
confusa, insignificante, fútil, chocha, banal, vulgar, enfim, uma frioleira. E,
definitivamente, a culpa é minha, pensava o atormentado professor.
Mesmo assim, resolveu apurar. Na
última aula, o tema era seríssimo, denso, pesado, chegava a sentir pena dos
meninos, tentava amenizar, tornar a coisa mais suave, mesmo assim o assunto era
duro: sobre a morte e o morrer. Pois não é que duas meninas, bem a sua frente,
conversavam e riam sem parar! O professou chamou-lhes a atenção e nada,
continuaram conversando e rindo. Dirigiu-se a elas então de forma pessoal: Qual
é o nome de vocês?, o que vocês têm a dizer sobre o assunto, repartam conosco o
que estão pensando. Nada. Nada disseram as meninas, apenas continuaram
conversando e rindo, rindo e conversando, para desespero do professor.
Terminada a aula a duras penas, o professor convidou as duas
para uma conversa particular. Elas relutaram, mas foram praticamente obrigadas
a aceitar. E o professor perguntou, direto, sem rodeios, puto da vida, confuso,
irritado: Qual é o problema? Estupefato, ouviu: Que problema, professor? Porra
(ele levava mesmo a sério essa história de Lábio é lábio...), vocês conversaram
e riram durante toda a aula! Desculpe professor, se faltamos com o respeito.
Não quero desculpas, quero entender o que está acontecendo. Professor, mas é
assim mesmo, em todas as aulas. É assim, em todas as aulas? É, professor, o
senhor desculpe. Já disse que não me interessam as suas desculpas! Então o que
o senhor quer, professor, que fiquemos caladas durante uma hora? Não, quero que
vocês repartam com a classe aquilo que estão pensando, sobre o tema que estamos
discutindo. Mas não queremos repartir, professor, não estamos acostumadas a
dizer o que pensamos para os nossos colegas, afirmaram as meninas, agora em tom
peremptório, denotando já alguma impaciência e agressividade.
O professor deu-se por vencido. Voltou
para casa triste e ensimesmado, considerando a possibilidade de encerrar
definitivamente a carreira docente. Lembrou-se então do velho Machado, eterno
companheiro das horas de melancolia, outro mestre na arte de colocar cada
palavra em seu lugar. Escreveu, o Bruxo, que um certo homem – que bem poderia
ser um nostálgico professor aposentado –, numa certa noite de Natal, desejou
exprimir com palavras, mais precisamente em versos, as sensações de um tempo
passado, e só lhe saiu o pequeno verso:
Mudaria o Natal ou mudei eu?
Uau! Que deliciosa surpresa! Puxa...você é um magnífico contista! E eu, leitora-professora, sou o endereço certíssimo para interagir com seu discurso. O sentido está justamente nessa interação dialógica. Obrigada, Professor!
ResponderExcluirParabéns, André Luiz!
Uma das inúmeras vantagens de se escrever é a função do desabafo, para o qual penso esse lindo conto também ter servido...
ResponderExcluirNão há dificuldade maior do que lidar com o sucesso... Um dia ele tropeça numa pedra da vida. Que conto maravilhoso!
ResponderExcluirMaravilhoso André . Uma delícia de ser lido e com a responsabilidade da forma com as palavras certas no lugar certo. Tínhamos conversado sobre isto mas escrito é outra estória. Um aspecto e tomarmos uma atitude incompreendida como algo contra nós. Algo a se pensar essa maneira dos alunos e o que fazer com isso.
ResponderExcluirSergio, isso é apenas um conto! Agora é ficção.
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