Quando
a maioria das pessoas pensa em psicoterapia, o que imediatamente lhes vem à
mente é uma forma de tratamento de distúrbios psíquicos conduzida por um agente
externo, na pessoa de um terapeuta. Ao seguir uma das diversas formas, ou
modelos, ou escolas de pensamento, o profissional dirige o processo nesta ou
naquela direção, segundo suas convicções teóricas e experiência clínica. (Bem
verdade que não é assim que trabalham os psicanalistas, preocupados antes de
tudo em valorizar o desempenho da dupla analítica, em vez de privilegiar
aquelas convicções do terapeuta. Porém, não é especificamente de Psicanálise
que nos dispomos a tratar neste pequeno ensaio.)
O
que pensamos em apresentar aqui é a possibilidade de que o ser humano, com seus
recursos próprios, possa praticar ao longo da vida alguma atividade psíquica
que por si mesma possa ser designada como “terapêutica”. Em outras palavras, procurar
atividades mentais que preservem (antes de tudo), ou restaurem (quando
necessário) o bom funcionamento da psique.
Não
poderia ser esta uma função da Arte? As pessoas cobrem as paredes de suas casas
com quadros, enfeitam-nas com esculturas, os museus estão repletos de gente que
quer ver a obra dos mais renomados artistas, os livros trazem reproduções de
toda sorte de manifestações artísticas, a música, a literatura, as mais
distintas formas de arte preenchem a vida de todos nós, às vezes de forma inconsciente,
mas isso parece nos reconfortar, sem dúvida alguma. Entretanto, tudo isso vem
de fora para dentro (exceto quando diz respeito ao desempenho do próprio
artista). Quando nos interessamos pela Arte, quando nos dedicamos ao estudo da
História da Arte, como que mergulhamos nesse mundo fantástico e sem limites da
criação humana.
Se não somos artistas natos, o que podemos produzir ou
criar, de modo muito pessoal, e que possa vir a ser experimentado como
terapêutico? Não se trata necessariamente de algo artístico, na concepção mais
estrita e rigorosa do termo. Trata-se, isso sim, de alguma produção com
possível efeito terapêutico.
O mergulho mais profundo que podemos realizar nas
diversas formas de Arte, parece-nos que seja na Literatura. A tal ponto a
expressão “dar um mergulho” nos parece clara, convincente, quase concreta, que
todos entendemos quando se fala em “mergulhar” em Dostoiévski. Ou mergulhar em
Tolstoi. Ou mergulhar em Guimarães Rosa. Trata-se de submergir no mundo ficcional
e particular de cada um desses autores. O que só a Literatura nos permite.
O ato de escrever pode se transformar num mergulho para
dentro de nós mesmos. Vejamos o que escreveu sobre isso Carlos Drummond de
Andrade, em entrevista recentemente publicada pelo jornal Folha de São Paulo1:
“De fato, a
poesia exerceu sobre mim um papel bastante salubre ou tonificante, procurando,
sem que eu percebesse, clarear os aspectos sombrios da minha mente. Tive uma
infância bastante confusa e triste, e uma mocidade tumultuada. Sentia
necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa com os amigos não
bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus problemas. Eram
questões que vinham, digamos, de gerações anteriores, de casamentos de tios com
sobrinhas, de primos com primas, tudo isso se acumulando na mente, criando
problemas de adaptação ao meio, de dúvida, de perplexidade etc. Então comecei a
fazer versos sem saber fazê-los, por um movimento automático. Foi uma tendência
natural do espírito e senti que, pouco a pouco, ia aliviando a carga de
problemas que eu tinha. Como se vomitasse. Nesse sentido, a poesia foi, para
mim, um divã.”
Quando
o poeta fala em “clarear os aspectos sombrios da minha mente”, não fala de
outra coisa senão no cumprimento, pela poesia, de uma função terapêutica, ao
tornar consciente, através da linguagem simbólica do poema, aquilo que ainda é
inconsciente. (Bem verdade que este processo pode ser facilitado em muito pelo
trabalho psicanalítico.)
A
“necessidade de expandir-se” faz parte deste processo e pode ser desencadeado pelo ato disciplinado e
persistente da escrita. A expansão psíquica – é dela que estamos falando – é algo
que podemos perseguir durante toda nossa vida, sob as mais variadas formas (através
da Arte, do aprendizado de línguas estrangeiras, da própria Psicanálise, etc).
Trata-se de um projeto para a vida inteira.
Ao
dizer dos “problemas que vinham de gerações anteriores”, Drummond refere-se àquilo que Freud chamou, em determinado
momento de sua construção teórica, do “romance familiar”2, e que também
pode ser elaborado pelo trabalho da escrita. A ficção traz quase sempre um
tanto de autobiografia. O exemplo mais eloquente pode ser encontrado na Carta
ao pai, de Franz Kafka, onde o autor afirma, referindo-se ao próprio pai: “Meus
escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no
seu peito.”3
Ao
iniciar o que aqui estamos chamando de terapia pela escrita, Drummond parecia não
estar preocupado com o sentido artístico daquilo que produzia. Ele apenas obedecia
a uma necessidade interna e imperiosa: “então comecei a fazer versos sem saber
fazê-los”. Buscava escrever sem a preocupação de estar fazendo Literatura. O
resultado não tardou em aparecer: “...senti
que, pouco a pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha”, o que
significa a expressão mais evidente da função terapêutica da escrita.
E
o poeta conclui de forma categórica: “a poesia foi, para mim, um divã”.
Nunca
se publicou tanto no Brasil. O livro já não representa o único veículo para tal,
e a Internet assumiu papel preponderante, através das chamadas mídias sociais,
blogs e congêneres, em tornar público aquilo que o homem comum pensa e escreve.
É bem provável que não surjam muitos Drummonds, assim de repente, em nossa
Literatura; porém, muitos de nós poderemos nos beneficiar da experiência do
poeta, ao experimentarmos o efeito terapêutico da escrita. Você, caro leitor, deseja
tentar?
1. Bortoloti, M. A voz do poeta - erotismo,
poesia e psicanálise em entrevista inédita de Drummond. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/53086-a-voz-do-poeta.shtml
2.
Freud, S. Romances familiares (1914). In
Gradiva de Jansen e outros trabalhos. Ed. standard
das obras completas, v IX, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
3.
Kafka, F. Carta ao pai. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
Muito bom este texto André. Mesmo em processo psicanalítico nunca devemos subestimar os nossos recursos próprios. São vários e você destaca dentre eles um valiosíssimo a Arte.
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