terça-feira, 17 de julho de 2012

Drummond e a escrita terapêutica



Quando a maioria das pessoas pensa em psicoterapia, o que imediatamente lhes vem à mente é uma forma de tratamento de distúrbios psíquicos conduzida por um agente externo, na pessoa de um terapeuta. Ao seguir uma das diversas formas, ou modelos, ou escolas de pensamento, o profissional dirige o processo nesta ou naquela direção, segundo suas convicções teóricas e experiência clínica. (Bem verdade que não é assim que trabalham os psicanalistas, preocupados antes de tudo em valorizar o desempenho da dupla analítica, em vez de privilegiar aquelas convicções do terapeuta. Porém, não é especificamente de Psicanálise que nos dispomos a tratar neste pequeno ensaio.)
O que pensamos em apresentar aqui é a possibilidade de que o ser humano, com seus recursos próprios, possa praticar ao longo da vida alguma atividade psíquica que por si mesma possa ser designada como “terapêutica”. Em outras palavras, procurar atividades mentais que preservem (antes de tudo), ou restaurem (quando necessário) o bom funcionamento da psique.
Não poderia ser esta uma função da Arte? As pessoas cobrem as paredes de suas casas com quadros, enfeitam-nas com esculturas, os museus estão repletos de gente que quer ver a obra dos mais renomados artistas, os livros trazem reproduções de toda sorte de manifestações artísticas, a música, a literatura, as mais distintas formas de arte preenchem a vida de todos nós, às vezes de forma inconsciente, mas isso parece nos reconfortar, sem dúvida alguma. Entretanto, tudo isso vem de fora para dentro (exceto quando diz respeito ao desempenho do próprio artista). Quando nos interessamos pela Arte, quando nos dedicamos ao estudo da História da Arte, como que mergulhamos nesse mundo fantástico e sem limites da criação humana.
            Se não somos artistas natos, o que podemos produzir ou criar, de modo muito pessoal, e que possa vir a ser experimentado como terapêutico? Não se trata necessariamente de algo artístico, na concepção mais estrita e rigorosa do termo. Trata-se, isso sim, de alguma produção com possível efeito terapêutico.
            O mergulho mais profundo que podemos realizar nas diversas formas de Arte, parece-nos que seja na Literatura. A tal ponto a expressão “dar um mergulho” nos parece clara, convincente, quase concreta, que todos entendemos quando se fala em “mergulhar” em Dostoiévski. Ou mergulhar em Tolstoi. Ou mergulhar em Guimarães Rosa. Trata-se de submergir no mundo ficcional e particular de cada um desses autores. O que só a Literatura nos permite.
            O ato de escrever pode se transformar num mergulho para dentro de nós mesmos. Vejamos o que escreveu sobre isso Carlos Drummond de Andrade, em entrevista recentemente publicada pelo jornal Folha de São Paulo1:

“De fato, a poesia exerceu sobre mim um papel bastante salubre ou tonificante, procurando, sem que eu percebesse, clarear os aspectos sombrios da minha mente. Tive uma infância bastante confusa e triste, e uma mocidade tumultuada. Sentia necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa com os amigos não bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus problemas. Eram questões que vinham, digamos, de gerações anteriores, de casamentos de tios com sobrinhas, de primos com primas, tudo isso se acumulando na mente, criando problemas de adaptação ao meio, de dúvida, de perplexidade etc. Então comecei a fazer versos sem saber fazê-los, por um movimento automático. Foi uma tendência natural do espírito e senti que, pouco a pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha. Como se vomitasse. Nesse sentido, a poesia foi, para mim, um divã.”

Quando o poeta fala em “clarear os aspectos sombrios da minha mente”, não fala de outra coisa senão no cumprimento, pela poesia, de uma função terapêutica, ao tornar consciente, através da linguagem simbólica do poema, aquilo que ainda é inconsciente. (Bem verdade que este processo pode ser facilitado em muito pelo trabalho psicanalítico.)
A “necessidade de expandir-se” faz parte deste processo e pode ser  desencadeado pelo ato disciplinado e persistente da escrita. A expansão psíquica – é dela que estamos falando – é algo que podemos perseguir durante toda nossa vida, sob as mais variadas formas (através da Arte, do aprendizado de línguas estrangeiras, da própria Psicanálise, etc). Trata-se de um projeto para a vida inteira.
Ao dizer dos “problemas que vinham de gerações anteriores”, Drummond refere-se  àquilo que Freud chamou, em determinado momento de sua construção teórica, do “romance familiar”2, e que também pode ser elaborado pelo trabalho da escrita. A ficção traz quase sempre um tanto de autobiografia. O exemplo mais eloquente pode ser encontrado na Carta ao pai, de Franz Kafka, onde o autor afirma, referindo-se ao próprio pai: “Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito.”3
Ao iniciar o que aqui estamos chamando de terapia pela escrita, Drummond parecia não estar preocupado com o sentido artístico daquilo que produzia. Ele apenas obedecia a uma necessidade interna e imperiosa: “então comecei a fazer versos sem saber fazê-los”. Buscava escrever sem a preocupação de estar fazendo Literatura. O resultado não tardou em aparecer:  “...senti que, pouco a pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha”, o que significa a expressão mais evidente da função terapêutica da escrita.
E o poeta conclui de forma categórica: “a poesia foi, para mim, um divã”.
Nunca se publicou tanto no Brasil. O livro já não representa o único veículo para tal, e a Internet assumiu papel preponderante, através das chamadas mídias sociais, blogs e congêneres, em tornar público aquilo que o homem comum pensa e escreve. É bem provável que não surjam muitos Drummonds, assim de repente, em nossa Literatura; porém, muitos de nós poderemos nos beneficiar da experiência do poeta, ao experimentarmos o efeito terapêutico da escrita. Você, caro leitor, deseja tentar?

1. Bortoloti, M. A voz do poeta - erotismo, poesia e psicanálise em entrevista inédita de Drummond. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/53086-a-voz-do-poeta.shtml
2. Freud, S. Romances familiares (1914). In Gradiva de Jansen e outros trabalhos. Ed. standard das obras completas, v IX, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
3. Kafka, F. Carta ao pai. São Paulo: Companhia das letras, 1997.


Um comentário:

  1. Muito bom este texto André. Mesmo em processo psicanalítico nunca devemos subestimar os nossos recursos próprios. São vários e você destaca dentre eles um valiosíssimo a Arte.

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