IN MEMORIAM
Aqui no planalto central não usamos muito a palavra verão; as estações na nossa região não obedecem às divisões clássicas. Aqui temos a seca e as águas. E posso dizer que é muito bom assim. Durante a seca com a grama completamente torrada, o céu enevoado e poeirento, nossos olhos se enchem da beleza dos ipês amarelos. Nas águas, céu chumbo, nuvens baixas, verde pra todo lado. Nosso verão é feito de águas. Nesse ano as águas estão tão chuvosas como há muito tempo não se via. Desde o início de novembro chove, e chove muito forte quase que todos os dias. As noites desde então vão ficando cada vez mais fresquinhas, puxamos um cobertor, bebericamos um vinho tinto de noite. O povo do litoral não vai entender nunca isso.
Essa última sexta-feira do fatídico ano de 2022 não foi diferente: ao invés de chope no boteco da esquina com espuma caindo em cima do pé se estivéssemos no Rio de Janeiro, hoje me decidi por sopa. Sopa no verão?! Descongelei um pacote de carne de panela do freezer, e tal qual a madeleine do Proust, fui invadida pela memória. Este pacote é metade da carne com a qual fiz a última sopa que o André ainda comeu. O fazer, o preparo do que vai nos alimentar, as lembranças de tantas outras sextas-feiras, de tantos outros jantares, de todos os dias que partilhamos juntos, muitos alegres, alguns tantos tristes, mas acima de tudo a memória de uma vida em comum é a nossa história e não há ficção que dê conta disso.
Nesse ano de 2022 muitas foram as perdas de pessoas essenciais, que nos impactaram e que portanto não morreram de todo, porque seguem conosco com suas ideias, seu brilhantismo, sua genialidade. Senti muito a morte da Nélida Piñon, uma mulher que desbravou um meio literário fortemente masculino, ainda que muito livre no seu viver, foi fortemente devotada às suas raízes, ao seu passado, aos seus antepassados. Coisa meio rara nos dias correntes. Tinha uma devoção quase que religiosa a Homero, da qual compartilho pois não pode haver nada mais lindo que os versos que antes de serem escritos tantas vozes repetiram para que pudessem chegar a nós. Da Nélida no entanto, a frase mais marcante para mim é aquela que descreve a emoção ao ganhar um cachorro salsichinha, o Gravetinho: “Eu não estava preparada para esse amor”. Sei bem do que ela está falando. O amor nos desarma.
Tantos outros morreram nesse ano que vai acabando. O André tinha uma certa birra da Gal Costa “por que ela tem que gritar tanto?”. Mas como esquecer “Brasil”? Atualíssima para os dias tristes que ora vivemos nesse nosso país.
Celebrou-se o centenário de nascimento do José Saramago. Já morto há algum tempo mas precisamos celebrá-lo sempre. Que privilégio poder ler o que escreveu esse homem. Sua escrita nos encanta, nos impacta e nos transforma. No seu livro muito pessoal “As pequenas memórias” de 2006, ao relatar eventos da infância e juventude, sob a amorosa influência dos avós maternos, lavradores, analfabetos, ele nos comove com esse trecho acerca da preciosidade da vida: “Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: ‘O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.’ Assim mesmo. Eu estava lá.”
Vamos aqui contando os mortos, somando saudades, sem lágrimas que cheguem para falar da falta que nos fazem. Se pudesse crer numa outra vida estaria agora imaginando o André na imensa fila para chegar junto ao rei. E ao se deparar com o Pelé, ele repetiria o gesto da infância quando o viu jogar em Guaratinguetá: um tapinha nas costas e a frase “Oh Pelé!”.