sexta-feira, 30 de abril de 2021

Fim do mundo

 

Quando, pela manhã, seu computador não abriu porque não reconheceu sua própria senha, ele concluiu:

– Estou morto! 


Dois amigos

 

Dois amigos, cultores de gentilezas, disputavam o melhor microconto. Quando o primeiro disse Você ganhou, o segundo replicou, Não, eu perdi.

 

O significado de ferrar


 

Ruy Castro, dos mais reconhecidos cronistas do país, escreveu na Folha de S. Paulo (27 abr 2021):

 

“...em Brasília, um irritado Edson Pujol, ex-comandante do Exército, ao encontrar-se com um abestado Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, fulminou-o: "Pô, Pazuello, quando o Bolsonaro lhe proibiu de comprar as vacinas você devia ter pedido demissão. Obedecendo, você se ferrou e nos ferrou junto!".

 

Continua Ruy Castro:

 

“É bom ler dicionários. No Aurélio, o verbo ferrar, significando "causar dano ou prejuízo", como o general Pujol o usou, é apenas a sétima acepção; no Houaiss, é a 14ª. Em ambos, a principal acepção é "pôr ferraduras (em cavalgadura)". Com todo respeito.”

 

            Sigo o conselho do cronista e vou ao dicionário (Pequeno Houaiss, disponível em meu computador), em busca de novos significados de ferrar. Para minha surpresa, todas as acepções do verbo servem, de um modo ou de outro, para expressar as reiteradas atitudes do poder central da república frente à sociedade, especialmente em tempos de pandemia. 

      Pôr ferrão na extremidade é ótimo: serve para cutucar, ferir, até torturar se for preciso. 

Pôr ferradura transforma todo mundo, especialmente subordinados e correligionários, em cavalgaduras (como acentuou Castro). 

Marcar com ferro quente é o que se fazia com escravos submissos e inimigos, ao torturá-los. 

Em sentido figurado, significa render-se totalmente a ou entregar-se; o verbo então cai como uma luva, ao tratar dos fanáticos seguidores da cartilha do ódio, ou de uma ideologia obscura, inqualificável; além dos ditos religiosos fundamentalistas, todos seguidores cegos, incapazes de pensar. 

Cravar ou enterrar, por exemplo, as garras na presa, e trucidá-la: é o que se faz com ex-amigos, ex-correligionários, todos aqueles que em determinado momento deixam de seguir a cartilha. 

Guardei por último o significado que mais bem se aplica, o mais verdadeiro, porque de consequências práticas terríveis: deixar mal ou ficar mal, sem saídaprejudicar. É o que se faz com o Brasil hoje; o país está mal; tão prejudicado que parece sem saída!

Vale a pena ir ao dicionário. As palavras e seus significados nos ajudam a pensar, a formar ideia mais aprofundada do tema em questão.

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/04/quem-com-ferro-ferra.shtml

 

Filho de peixe

 

Ele conheceu bem o pai do novo vizinho. Quando este lhe atirou a primeira pedra, desculpou-o.


segunda-feira, 26 de abril de 2021

Emílio aos 10 anos

Galeria de Família 


Festa de aniversário

Emílio 10 anos, mamãe Flora, Tia Nara 

e a irmãzinha Olívia!

Um grande ator!

A foto do dia 


Aos 83 anos, Anthony Hopkins, natural do País de Gales, ganha seu segundo Oscar, com o filme Meu Pai. Um grande ator!

Poesia ou prosa?



 

Quem lê prosa sabe que está lendo prosa; aquele que lê poesia, sabe que está a ler poesia; no entanto, nem sempre sabe o que diferencia uma coisa da outra. Chega a sentir – o que é muito importante –, mas não sabe.  

É disso que trata a belíssima introdução de Noemi Jaffe, em artigo publicado na Revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, n. 32, julho de 2019, sob o título Rosa, substantivo, substância. Ela pergunta:

            – A escrita de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, é prosa ou poesia?

            Quantos de nós, embora tenhamos tido contato vezes sem conta com ambos os gêneros, já nos perguntamos, de fato, qual a diferença entre poesia e prosa? Nada menos que brilhante, a conceituação exposta por Jaffe:

 

“Uma das mais importantes diferenças entre prosa e poesia – junto à ideia de que a poesia retorna (por isso o verso) e a prosa continua – é o fato de que, na primeira, as frases se unem mais por subordinação e, na segunda, por coordenação. Na prosa, a importância de uma trama já explica, pelo próprio nome, a imbricação de histórias, hierarquias, caminhos e descaminhos, conflitos, tensões e distensões. E isso é fato tanto na prosa clássica como na contemporânea, mesmo que haja ausência do fator causa-consequência ou mesmo das formas tradicionais de abordagem do tempo, espaço, personagem e enredo. Ora, é o verbo que catalisa a ordenação da frase, para que possam ocorrer as conjunções subordinativas – embora, apesar, contanto, se, que, a não ser que, como etc. O verbo é o núcleo das orações, seu organizador temporal, pessoal e numeral. O verbo temporaliza o espaço, ou, dizendo com outras palavras, o verbo é o condutor das histórias.

            Já na poesia, que talvez se possa definir por uma espacialização do tempo, o verbo não exerce o mesmo papel – quem ocupa esse lugar são os substantivos. Coisas surgindo como palavras, palavras surgindo como coisas, mais autônomas, menos dependentes de um núcleo centrífugo ou centrípeto. Cada artigo, pronome, preposição, num poema, tem valor também por si, independentemente da sua subordinação a uma hierarquia morfológica ou sintática. Dessa forma, pode-se exagerar e dizer que quase todas as classes de palavras, num poema, são espécies de substantivos, em função de sua autonomia semântica ou sintática.

            Esse efeito, de maior subordinação na prosa e maior coordenação na poesia, faz com que, entre outras coisas, a prosa gere mais sensação temporal, e a poesia, por sua vez, mais sensação espacial. Na poesia, a linguagem quer coincidir com seu objeto, quer suprimir, ao máximo possível, a arbitrariedade do significante – e por isso ressalta íntegra, quase como coisa. Prosa e poesia: dinâmica e estática; dependência e autonomia lexical; tempo no espaço e espaço no tempo; trama na linguagem e linguagem em trama.”

 

            Tudo isso, para Jaffe dar embasamento a uma única pergunta, sobre a escrita de Guimarães Rosa, e a partir daí desenvolver sua tese:

            – “Diz-se que ele escreve prosa. Será?”

            Com um ou outro laivo de erudição linguística exagerada, para alguns, penso que o texto de Jaffe é bastante claro e elucidativo; registro-o aqui com o pensamento em meu irmão Paulo, poeta de primeira grandeza, que, mesmo sabendo disso tudo, não precisou de conceitos e teorias linguísticas para compor o Esmo, um grande livro de poesia.

 

sábado, 24 de abril de 2021

De pequenino que se torce o pepino

 

K. nasceu em berço de ouro. Nunca fez refeições em casa, sempre em restaurantes, acompanhado dos pais. Cedo aprendeu a bajular garçons.


sexta-feira, 23 de abril de 2021

Dia Mundial do Livro 2

 

Bernardo Carvalho escreveu hoje (23 abr 2021) para a Folha: “Literatura não é manual nem modelo de comportamento”.

Nabokov observou sobre suas aulas na Universidade Cornell: “Tentei tornar os alunos bons leitores, que leem livros não pelo motivo infantil de se identificar com os personagens, nem pelo propósito adolescente de aprender a viver ou pelo projeto acadêmico de fazer generalizações”. (O grifo é meu.)

            Afirma Carvalho: “Nabokov combatia, já naquela época, uma leitura convencional e conservadora, que hoje se impõe como novidade e às vezes até como revolução. ...a literatura inversamente não pode ser atrelada à simples evocação de uma questão moral. Literatura não é manual nem modelo de comportamento. Ela não tem de seguir diretrizes, requisitos e restrições impostas à liberdade de explorar tudo o que é humano. Literatura não é um problema de caráter.”

Bernardo Carvalho conclui: “Fazer a literatura corresponder à representação de um modelo moral serve de ilusão paliativa, é o correlato natural e desesperado da nossa impotência diante da indecência da realidade, diante do mal. Mas também é desistir da charada que não conseguimos resolver. É jogar a toalha antes mesmo do início da partida.”

            Acrescento eu, despretensiosamente: Literatura é Liberdade.

            (Não posso esconder: tenho batido numa mesma tecla neste blog, a de que em Literatura é preciso cuidar da forma, às vezes mais que do conteúdo. Isso seria uma limitação à liberdade; de fato, não o é. Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960, é um bom exemplo de que a liberdade de expressão acaba por vencer:  Carolina deixou a forma de lado e fez prevalecer as circunstâncias. Estrondoso sucesso, revivido recentemente com nova edição do livro.)

            Reitero: Literatura é liberdade de pensar, tanto por parte de quem escreve, e mais ainda por parte de quem lê. Mas que o leitor não se iluda: “Literatura não é manual nem modelo de comportamento”, como afirma Carvalho. 

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2021/04/literatura-nao-e-manual-nem-modelo-de-comportamento.shtml

 

Dia Mundial do Livro

 



“Taxar livros é novo obstáculo para reduzir imenso 
e perverso fosso social.”

 

                                                           Galeno Amorim

 

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/04/robin-hood-as-avessas.shtml

 

Paula continua brilhando

A foto do dia 


Paula Vianna, Búzios, RJ

domingo, 18 de abril de 2021

Tragédia de longa duração



 

"Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística". Assim Hélio Schwartsman inicia sua crônica Vivendo com a tragédia nesse domingo, no Estadão (18 abr 2021).

Segundo ele, a frase teria sido proferida por Stálin, sem que haja comprovação disso. De qualquer modo, o fenômeno existe e é chamado de habituação: “uma forma de aprendizado caracterizada pela diminuição da intensidade com que respondemos a um estímulo à medida que a exposição se repete ou se prolonga”. 

Minha casa fica próxima a uma via de grande movimento, que liga o centro a uma certa periferia de Brasília, de alta densidade populacional e acentuada pobreza socioeconômica. Desde o início desta pandemia, e isso já vai para mais de ano, ouço a macabra sirene das ambulâncias que vão e vêm, buscando pacientes acometidos da Covid-19 e transportando-os para hospitais distribuídos pela cidade, incontáveis vezes ao dia. 

Durante os primeiros meses o som das ambulâncias produzia em mim forte comoção – não exagero –, por duas razões bem claras. A primeira era a dor da tragédia em si, o sofrimento das gentes mais necessitadas expostas à infecção, principalmente no precário transporte coletivo da Capital do país, de que são todos dependentes. Como não aglomerar, se vão trabalhar em ônibus lotados? 

O segundo motivo do abalo emocional era tão evidente e talvez até mais insuportável que o primeiro: a ameaça da morte, de minha própria morte. Aprendi a diferenciar o som das ambulâncias daquele dos carros da polícia; é incrível, mas a sirene da polícia oferecia um certo alívio.

É aí que entra a habituação de que fala Schwartsman: ela permite espécie de adaptação a dura realidade, questão de sobrevivência emocional, um certo tipo de aprendizado, porque a vida segue. Uma reação bastante humana.

Prossegue Schwartsman: “O lado menos brilhante da habituação é que ela normaliza aquilo que, no plano moral, não deveria ser normalizado. É o que está acontecendo agora no Brasil com a epidemia de Covid-19. Estamos há tanto tempo lendo sobre o aumento de mortes e vendo imagens dos congestionamentos de caixões que a carnificina por que estamos passando já não desencadeia em nós a reação adequada, que seria a de exigir dos governantes medidas efetivas e imediatas para minorar a crise.”

É por isso que o brilhante articulista afirma que “No plano valorativo, a habituação é ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição.”

      Enquanto isso, as sirenes continuam a soar.


 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/04/vivendo-com-a-tragedia.shtml

 

sábado, 17 de abril de 2021

À espera dos bárbaros


 

 

Acaba de estrear na plataforma Mais Apple TV o ótimo filme À Espera dos Bárbaros, adaptação do romance homônimo do Nobel de Literatura J. M. Coetzee (Companhia das Letras, 2006), dirigido pelo colombiano Ciro Guerra.

Um juiz anônimo (Mark Rylance), autoridade única representante de um império não identificado, num povoado localizado em vasto deserto distante, em país desconhecido, vive em completa paz.  A súbita e inesperada visita do sinistro Coronel Joll (Johnny Depp), enviado plenipotenciário do império central colonialista, chega para obter informações sobre uma suposta invasão de inimigos, os povos autóctones – por eles denominados bárbaros.

O coronel pretende descobrir a "verdade", aparentemente oculta pelo pacato juiz, desde logo acusado de conluio com os bárbaros; desde o início da história, fica claro que ele deseja encontrar a verdade que convenha ao império, e a encontra utilizando-se da tortura mais desumana possível. A inesperada violência desconcerta o juiz, homem que vivia ocupado apenas com os achados arqueológicos da região, em particular com tabuinhas cobertas por uma escrita também desconhecida.

O pacato protagonista (cuja interpretação vale o filme), ao não perceber a brutalidade do sistema dominante, busca recuperar o controle do povoado e socorrer aqueles que foram torturados pelo coronel Joll. Ele falha em todas as suas ações, embora siga perguntando “onde está o inimigo”? De tanto procurar, o inimigo acaba aparecendo.

A despeito de tudo que é desconhecido e oculto na realidade apresentada ao expectador, o simbolismo de À espera dos bárbaros é riquíssimo e bastante claro; o filme é uma grande metáfora.

Coetzee é o roteirista que adapta seu próprio livro, empreitada que nem sempre oferece bons resultados, mas que aqui só faz abrilhantar a direção de Ciro Guerra.

À Espera dos Bárbaros nos faz relembrar de maneira inequívoca os malefícios das ideologias totalitárias, quaisquer que sejam suas origens ou tendências. Em outras palavras, para usar bordão atualíssimo, Ditadura Nunca Mais!

       (Inicio hoje mesmo a releitura do romance!)

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Mercado velho de Rouen

Meus quadros favoritos 


Camille Pissarro

Ponto e vírgula

 




Ponto e vírgula é legal; não é? Este o título da ótima coluna de Sérgio Rodrigues para a Folha de ontem (14 abr 2021). 

Afirma ele: “O ponto e vírgula (;) é, como se sabe, sujeito singular, apesar do disfarce desse “e” no meio; um sinal de pontuação que vem a ser uma cópula de sinais, ponto em cima, vírgula em baixo; meio a meio, e inteiramente fora de moda. ...Na vida real, o ponto e vírgula que Machado de Assis amava — o que basta, óbvio, para garantir sua imortalidade enquanto o português brasileiro existir — não foi muito bem tratado pelo século 20. O estilo modernista deu início à sua rejeição, identificando-o com afetações bacharelescas; e na segunda metade do século a língua objetiva e direta da imprensa moderna completou o serviço, condenando-o ao relativo ostracismo de hoje.”

Pois eu uso e abuso do ponto e vírgula, é só prestar atenção à maioria dos textos desse blog. Eu adoro! Penso que foi a praga das frases curtas popularizada por Ernest Hemingway que colaborou decisivamente para o sumiço deste sinal; impossível utilizá-lo no estilo literário que denomino escrever aos soluços. Reconheço que a leitura fica mais fácil, mas perde em qualidade literária.

Talvez a perda seja cultural, como assinala Rodrigues; como abr em vez de abraço; bj em vez de beijo; tbm em vez de também; vosmecê nem pensar, agora é vc; a lista é interminável. A implacável lei do menor esforço? Talvez, mas com isso vamos perdendo as verdadeiras palavras. (Fico pensando se quem assim escreve, também pensa assim, abreviadamente. Não me sinto abraçado com um abr.)

Sem falar dos emogis! É polegar para cima, polegar para baixo, cara séria, riso discreto, gargalhada, chororô, mãozinhas batendo palmas. Por que não aplaudir com palavras?! (Quem pensa através dessas figurinhas, pensa de maneira pobre, ou nem pensa.)

Estou por fora, ou fora de moda? Machado de Assis está fora de moda? Temos poucas coisas tão preciosas quanto nossa língua; por quê abrir mão dela em troca de quase nada?

      Rabugices do velho blogueiro?


 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2021/04/ponto-e-virgula-e-legal-nao-e.shtml

 

quarta-feira, 14 de abril de 2021

O professor

 

Rotina

 

Professor durante 40 anos, aposentou-se. Manteve o hábito de preparar a aula semanal, nunca mais proferida.

 

 

 

Receio

 

Ao reencontrar um ex-aluno, receoso, se perguntava sempre: terá sido reprovado?

 

 

 

Justiça

 

– Oi professor!

– Oi!

– O senhor tinha mesmo que me reprovar. Eu não sabia nada.

 

 

 

Ato falho

 

– Oi professor, o senhor ainda por aqui?!

 

 

 

Esquecimento

 

Com o passar dos anos seus ex-alunos já não o temiam. A reprovação não os ameaçava mais.

 

 

 

Invisível

 

Após muitos anos de aposentadoria, passeava pela Universidade como um fantasma.

 

 

segunda-feira, 12 de abril de 2021

comunhão

 

eu creio

tu não crês

nossos olhos descerram névoas

 

no entanto nos vemos 

com a nitidez dos opostos

ofereço a ti a minha fé

de todo coração

tu me ofereces a tua descrença

com todo sentimento

 

tua descrença me ampara

e torna livre a minha comunhão 

minha fé te acolhe

brando aroma difuso

 

o que nos une é o banho dos pássaros 

                                    [na água da fonte

a banalidade do mundo

a efemeridade dos dias

alguma música

algum verso

não nos ocupamos com certezas

basta-nos habitar o reino das palavras



                          Paulo Sergio Viana

 



Poema publicado originalmente em: 


https://blogdopaulosergioviana.blogspot.com/2021/04/comunhao.html


O sonho de Picasso



 

Aos 75 anos de idade Pablo Picasso teve um sonho. Andava solteiro por aqueles dias, trabalhando em casa, quando a campainha tocou. Foi atender, era Brigite Bardot que viera lhe fazer uma visita. Maravilhado, Picasso convidou-a para entrar e conhecer o ateliê dele.

            Brigite, com seu ar ingênuo de menina, mais linda do que nunca, mais sedutora do que nunca, trajava primaveril vestido rodado, de farto decote a descobrir os fartos seios. Picasso, mais bobo do que nunca.

            De braço dado com Brigite, o artista lhe mostrava embevecido suas criações, esculturas em madeira, em pedra, em argila, uma cabeça de touro feita com um guidão de bicicleta, arte de onde parecia impossível fazer arte, as telas todas, as mulheres todas de uma vida inteira, os desenhos, ah! os desenhos! 

            Picasso parou nos desenhos eróticos, eram cadernos e mais cadernos, folhas soltas de todos os tamanhos, tudo ali, explícito, diante da moça embevecida. Até que, nem tão ingênua assim, ela desconfiou que se tratava de uma cantada, cantada artística! Fechou a cara.

            Picasso percebeu a recusa, procurou remediar lhe ofertando um presente: ali mesmo, num átimo, pegou de um prato, desenhou em azul uma pomba da paz, e Brigite voltou a sorrir. (Freud diria que aquele expediente foi um artifício do inconsciente para que o sonho não terminasse.)

            Ao acordar, antes mesmo do café com brioche, Picasso pintou mais uma mulher. De fartos seios.

Gato preto

 


saiu do bueiro

do outro lado da grade

me olha prisioneiro


Foto: Mercêdes Fabiana, abr 2021

Leitor precavido

Ele sempre comprou mais livros do que era capaz de ler; era criticado por isso. Hoje, isolado, pode usufruir de sua biblioteca.

Aprendizado forçado

 

Era fanático por futebol, dentre outros motivos, porque seu time o ensinava a perder.

domingo, 11 de abril de 2021

sábado, 10 de abril de 2021

Meu Pai

 

 

Posso me lembrar, de pronto, de dois filmes recentes que tratam do tema da demência, de forma a emocionar profundamente àqueles que gostam de cinema: Amor e Para sempre Alice. A eles se soma agora o espetacular The Father (Meu Pai), estrelado por Anthony Hopkins e Olivia Colman. O diretor Florian Zeller é autor da peça de teatro Le Père, que deu origem ao filme; a adaptação é muito bem feita, de modo a explorar os elementos audiovisuais do cinema com maestria.

            Desde as primeiras tomadas no interior de um amplo apartamento o diretor busca desorientar o expectador com uma sequência de cenas nas quais a troca contínua de personagens não faz qualquer sentido para o protagonista – nem para o suposto sadio expectador. Desde logo o brilhante desempenho de Hopkins acentua tal impressão, tamanha a expressividade dos diálogos, quando ele ainda aparenta ser um homem normal, que apenas não sabe o que está acontecendo. Logo em seguida o estado de demência torna-se evidente. A partir daí, não tenho adjetivos para descrever a atuação desse ator. 

            Passados dez ou quinze minutos desde o princípio do filme pude notar em mim profundo desconforto, uma certa aflição, que só o cinema de qualidade pode proporcionar; afora aquilo era meu, e ainda o é no momento em que escrevo esta crônica, independentemente da história.

            Meu Pai fala das relações da pessoa idosa com a família, filhos, da vida cotidiana, quando a velhice é acompanhada da deterioração mental e a percepção do mundo real sofre definitivas transformações. Cenas emocionantes entre pai e filha são valorizadas pelas atuações de Hopkins e Olivia Colman. 

Nas cenas finais, a dor psíquica causado pela doença, a sensação de completo abandono e desamparo, a ponto de Anthony – o protagonista toma emprestado o nome do ator e sua data de nascimento – chamar pela mãe e chorar como um bebê.

Há grande diferença em retratar a demência já instalada, de que trata Meu Pai, e o processo de demenciação, revelado em Amor e Para sempre Alice. No primeiro filme as alucinações, delírios, perda grave da memória, desorientação de tempo e espaço, mudanças bruscas e violentas de humor surgem desde o princípio, sem que se possa fazer qualquer ideia de quem foi aquela pessoa antes da doença. Nos dois outros filmes citados, os pequenos lapsos, os esquecimentos – em especial de nomes próprios, o que pode ser bastante aflitivo –, as alterações inesperadas e desproporcionais de humor, até mesmo a depressão, marcam, como o próprio nome indica, o processo de demenciação. Em ambas as situações, o sofrimento do paciente e de quem está a sua volta é sempre muito grande.

Quando me refiro àquilo que é meu, aos 74 anos de vida, é só meu: esta crônica é uma pálida tentativa de repartir com o eventual leitor o modo como vi The Father. Tenho enorme dificuldade em lembrar nomes próprios; há dois dias coloquei açúcar cristal no saleiro e estraguei a salada de minha mulher; esqueço o gás do fogão aceso após retirar a panela do fogo; ligo a máquina de lavar para adiantar o serviço e me esqueço de estender a roupa para secar; perco o celular pela casa; quando não posso me esquecer de algo, tomo nas mãos um objeto qualquer, para não me deixar esquecer, mas acabo me esquecendo da serventia daquele estranho objeto. Melhor parar por aqui.

O exercício diário de escrever é a tentativa de preservar o que resta de minha mente. Não se trata de tentativa desesperada porque me é fonte de grande prazer.

Vale a pena ver Meu Pai.

 

 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Estudante

Meus quadros favoritos 


Felice Casorati (1883-1963)

Pintor italiano, período: Arte Metafísica


“A Arte metafísica (em italiano: Pittura Metafisica) é a designação de um estilo de pintura que se desenvolveu, principalmente, entre 1911 e 1920, pelos dois artistas italianos Giorgio de Chirico(1888-1978) e Carlo Carrà (1881-1966) e, mais tarde, por Giorgio Morandi (1890-1964). 

    O termo surgiu durante a estada de Chirico e Carrà no hospital neurológico Villa Del Seminario em 1917, e o nome advém da criação de uma natureza visionária do mundo para além da realidade das coisas.

     Este estilo caracteriza-se pela utilização de imagens que conduzem a um ambiente misterioso, enigmático, onírico, com iluminação irreal e perspectivas impossíveis, e iconografia simbólica estranha, como frutas, legumes, estátuas e manequins; as imagens representam objectos e entidades reais, mas transmitem-na de forma incongruente e inquietante. A estrutura arquitectónica lembra a imobilidade da arte do Renascimento do século XVI. 

      A pintura metafísica vai buscar influências ao movimento simbolista, e influencia ela própria o surrealismo na década de 1920, nomeadamente nas obras de Salvador Dalí (1904-89) e René Magritte (1898-1967).” 

 

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Arte_metaf%C3%ADsica

Neandertais humanos?


Crânio de mulher que viveu há 45.000 anos
na atual Tepública Tcheca
         

 

A reportagem é de  Nuño Dominguéz para El País (08 abr 2021) e traz manchete chamativa: “Genoma europeu mais antigo revela sexo contínuo com neandertais.”

Foram descobertos ossos de quatro pessoas que viveram na Europa há 45.000 anos, com destaque para o crânio sem rosto de uma mulher que viveu na atual República Tcheca. Os restos dos outros três homens foram achados em caverna da Bulgária “junto a colares e estiletes típicos dos primeiros grupos de humanos modernos”.  DNA destes fósseis, os mais antigos que se conhecem da nossa espécie, permitiram a reconstrução de todo o genoma.

Informa Dominguéz: “Os resultados mostram que um dos homens da Bulgária teve um parente neandertal menos de 180 anos antes. Os outros três indivíduos também tinham parentes dessa espécie. Todos descendiam de híbridos resultantes do sexo entre neandertais e sapiens. O genoma da mulher da República Tcheca também contém 3% de DNA neandertal.”

A conclusão é que os cruzamentos entre neandertais e humanos modernos foram muito mais frequentes e recentes do que se pensava. Há uma teoria surpreendente, a de que “os neandertais nunca se extinguiram totalmente, tendo sido, em vez disso, absorvidos pelos grupos sapiens, que os aceitaram em seu meio.”

O geneticista Carles Lalueza-Fox tem a seguinte hipótese: “É possível que os humanos modernos tolerassem os híbridos, e os neandertais, não. Ou pode ser que os neandertais rejeitassem seus filhos híbridos depois de nascidos”. O geneticista explica que “os grupos neandertais eram muito pequenos e endogâmicos, fechados e isolados entre si. Já os grupos sapiens podiam ser mais amplos e sociais, abertos ao contato e à colaboração com outros. Em todo caso, “a assimilação dos neandertais é um cenário muito possível, de forma que os únicos que sobrevivem afinal são os que acabam em grupos sapiens. Depois, seu sinal genético vai se diluindo com o passar do tempo”.

Os quatro humanos agora analisados tinham pelo menos 3% de DNA neandertal e sequências genéticas muito mais longas que os humanos atuais. 

E o reconhecimento progressivo da Evolução das Espécies, incluindo a humana, continua a ser desvendado. Pergunta que não me sai da cabeça: por que não passar a chamar os neandertais de humanos? Mas não tenho autoridade científica para respondê-la.

 

https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-04-08/genoma-europeu-mais-antigo-revela-sexo-continuo-com-neandertais.html

 

Composição

A foto do dia


Paula Vianna, Búzios, RJ

quarta-feira, 7 de abril de 2021

A rua da minha casa em tempos de pandemia

 



às !0 horas e 46 minutos de uma 
                                        [quarta-feira

chego até o portão

as casas todas em silêncio

esperança de encontrar algum ser vivente

não ouço nem mesmo o latido de um cão

o gato malhado se esconde no bueiro

pardais não pousam nos fios de 

                                        [eletricidade

as árvores parecem tristes

a rua da minha casa completamente 

                                        [deserta

uma caçamba de recolher entulhos

poderia dar sinal de que ainda há vida 

                                        [por aqui

nem isso

eu, só 

            – atrás de grades




Foto: AVianna, abr 2021

 

terça-feira, 6 de abril de 2021

Duas questões sobre a Psicanálise




1 – Terá existido algum outro psicanalista de verdade depois de Freud?

 

2 – A despeito do monumental constructo psicológico por ele elaborado, terá algum dia Freud exercido o que ele mesmo chamou de Psicanálise?

 

Arrisco palpites:

 

1 – Sim, poucos, muito poucos.

 

2 – Ele fez o que pôde.

 

O que importa é que desde a criação da Psicanálise muita gente tem se beneficiado do trabalho realizado pela dupla analista/analisando. 

domingo, 4 de abril de 2021

Crônica da Sexta-Feira da Paixão

 

Retrato do Pe. José Maurício

pintado por seu filho José Maurício Jr

 

 

Por que nutro profundo respeito pela Igreja Católica? Por seu papel primordial no desenvolvimento das artes, da pintura, arquitetura, escultura e, em especial, da música. Tal sentimento me acompanha desde a infância.

            Fomos criados, eu e meus irmãos, em uma família espírita. Minha mãe, formada professora primária, professava o catolicismo até casar-se com meu pai; converteu-se ao Espiritismo pela via mais improvável, mas esta é outra história. A despeito disso, me lembro bem quando ela me convidou para assistir a procissão da Sexta-feira da Paixão. Eu menino com dez anos, ela conseguiu me atiçar a curiosidade, com dois fortes argumentos:

            – Você vai gostar das músicas cantadas, há uma cantora daqui da cidade com voz lindíssima. E vai conhecer o som da matraca!

            Matraca? Matraca não é uma mulher que fala pelos cotovelos?, pensei eu.

            Não acompanhamos a procissão. Minha mãe escolheu um bom lugar em rua por onde o cortejo passaria e esperamos algum tempo; era noite fechada, o local pouco iluminado, o clima solene, quase lúgubre; a procissão passou, impressionante o andor carregado por seis homens, a imagem recoberta por um pano roxo, me lembro bem depois de mais de 60 anos.

Gostei muito da cantoria, solene imponente majestosa emocionante, a tocar definitivamente a alma do menino. Adorei a matraca, pápápápápápá, embora tenha achado o som muito parecido com aquele produzido pelo homem-do-bijú, tipo de biscoitinho muito popular naquela época, vendido por ambulantes que carregavam às costas um volumoso cilindro de metal com os quitutes.

            Durante toda a Semana Santa as rádios da cidade tocavam apenas música sacra, em sinal de respeito; talvez pouca gente ainda saiba disso. Eu ouvia aquelas músicas e gostava. Ainda gosto, ouço música sacra desde então, não apenas na Sexta-Feira da Paixão; com assiduidade ouço o Réquiem de Mozart, minha preferida, aos sábados pela manhã. (Certa vez ouvi de um amigo, Por que você gosta dessa música tão triste? Sinto-a solene imponente majestosa emocionante, tudo menos triste, respondi.)

            Aprendi com minha mãe a gostar também da música sacra brasileira, ao ouvi-la enaltecer Padre José Maurício, “reconhecido internacionalmente”, segundo ela. José Maurício Nunes Garcia (Rio de Janeiro, 1767-1830) foi um padre católico, professor de música, maestro e compositor, mulato, descendente de escravos, que nasceu pobre, mas recebeu sólida educação em música, letras e humanidades. Foi nomeado mestre de capela da Catedral do Rio de Janeiro no final do século XVIII, tendo caído nas graças do príncipe-regente dom João, grande admirador de seu talento, indicando-o diretor da Capela Real e fazendo-o cavaleiro da Ordem de Cristo. Minha mãe sabia disso tudo.

            A Missa de N. Sra. da Conceição, de José Maurício, foi gravada pela Orquestra Sinfônica Brasileira e Coro Sinfônico do Rio de Janeiro, sob regência de Roberto Minczuk; é das mais lindas que já ouvi.

            Assim é que, ainda hoje, a Sexta-feira da Paixão não é para mim um dia triste.