– Doutor, o que eu tenho?
Nem bem acabara de ouvir as queixas de Geraldo e
examiná-lo, quando ele disparou a pergunta Doutor, o que eu tenho? Nada de tão
extraordinário, parece até uma pergunta óbvia face a natural ansiedade de
qualquer pessoa doente, a não ser por um detalhe. Encaminhado por um colega
gastroenterologista, ele trazia consigo, em envelope fechado, o laudo de uma
biópsia realizada através de endoscopia digestiva com o diagnóstico de câncer
do estômago; e a mensagem que eu acabara de ouvir de Elisabeth Kübler-Ross era
taxativa, Não minta ao seu paciente.
– Vou interná-lo, vamos fazer mais alguns exames, e então
saberemos o que você tem, Geraldo; assim poderei informá-lo com segurança,
esteja certo de que vou informá-lo. Foi tudo o que pude dizer naquele momento,
mas já antevendo uma série de dificuldades emocionais de minha parte,
despreparado que me encontrava para conduzir relação tão complexa.
Para que o leitor possa compreender melhor o contexto em
que tais fatos ocorreram, é preciso dizer que até o início da década de 80 os
médicos, em sua grande maioria, não revelavam claramente aos seus pacientes o
verdadeiro diagnóstico. Usavam comumente de eufemismos como “uma inflamação no
estômago”, “uma massa” em tal órgão, uma série de piedosas mentiras, enfim,
certos de que protegiam seus pacientes do risco de uma depressão, ou até mesmo
do suicídio. Menos provável é que pudessem admitir a própria dificuldade e
despreparo para tratar do assunto Morte.
Geraldo foi internado, os exames pré-operatórios
realizados, marcada a operação, e minutos antes do início da anestesia, ele me
olhou com determinação e disse Doutor, o senhor prometeu que vai me dizer a
verdade.
A operação foi um fracasso completo. Havia um enorme
tumor maligno no estômago, invadindo órgãos vizinhos e toda a cavidade
abdominal, de modo que nada pôde ser feito. Ao acordar, já na recuperação,
Geraldo, ainda confuso pelo efeito da anestesia geral, repetiu a pergunta
Doutor, agora o senhor já sabe o que eu tenho?
Mais uma vez minha resposta foi evasiva, Não podemos
conversar agora, você precisa recuperar-se completamente dos efeitos da
anestesia, depois então conversamos. Ficava cada vez mais clara a minha
dificuldade em encontrar a melhor forma de lhe dizer a verdade, já que eu
estava determinado a fazê-lo.
No dia seguinte minha ansiedade manifestou-se assim que
acordei. O hospital ficava a pouco mais de 30 Km do Plano Piloto, em Brasília,
na cidade satélite de Sobradinho. Aquela pequena viagem cotidiana era sempre um
momento de reflexão sobre o trabalho, sobre as dificuldades do dia, as
operações a serem executadas, as aulas ministradas, sobre a vida enfim, mas
naquele dia o assunto era como conversar com Geraldo acerca de sua doença.
Assim que me viu entrar na enfermaria repetiu a pergunta Agora podemos
conversar, doutor? Respondi com visível irritação, Geraldo, virei vê-lo em seu
leito pelo menos três vezes ao dia, conversaremos sobre tudo, mas não me faça
mais esta pergunta. Deixe isso comigo. Assim que entender que você está em
condições de conversar sobre sua doença, eu mesmo vou chamá-lo. Concorda
comigo?
Geraldo não teve outra alternativa senão concordar. E
assim transcorreu a semana de pós-operatório, felizmente sem qualquer
complicação. Pudemos nos conhecer um pouco mais, conversávamos sobre tudo,
fiquei sabendo que ele era solteiro, morava com a mãe idosa e uma irmã de 10
anos de idade em Planaltina, cidadezinha bem próxima de Sobradinho, e que era
pintor de parede. Seus rendimentos mal davam para pagar o barraco alugado e
sustentar a mãe e a irmã. No sétimo dia depois da operação convidei-o para
conversar.
– Você ainda deseja saber sobre sua doença?
– Claro, doutor! O que eu tenho?
– Você tem um tumor no estômago.
– E o senhor tirou o tumor?
– Não pude
tirá-lo, Geraldo.
– Por
que?
– Ele
invadia outros órgãos, e portanto não poderia mais ser removido.
Seguiu-se um longo silêncio, cortado pela curta e dura pergunta:
– É câncer, doutor?
– É sim,
Geraldo.
Depois
de alguns minutos de silêncio, ele começou a chorar baixinho. Eu, segurei meu
choro na garganta.
O medico se comove com a dor do seu paciente. Por que? Porque entre os dois existe apenas uma tênue " camada de destino"...
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