D. Quixote e Sancho Pança, por Candido Portinari (1956)
Próximo
dos 70, todas as pessoas deviam visitar D. Quixote de La Mancha. Para aqueles
que nunca o leram, será uma gratíssima surpresa! Para alguns que já o conhecem,
certamente será uma revisitação não menos surpreendente. Este é o meu caso.
E
por que lê-lo ou relê-lo em idade mais madura, ou mesmo na velhice? A primeira
razão há de saltar aos olhos do leitor, logo nos primeiros capítulos: é quando
não mais se tem medo do ridículo. Os aspectos mais trágicos do texto,
representados pelo Cavaleiro da Triste Figura, podem revelar a comicidade
inevitável contida no ridículo. Antes mesmo de sair para as famosas aventuras,
D. Quixote revelara-se inveterado leitor, o que constitui a essência mesma de
seus delírios e fantasias. O mesmo pode ocorrer com o leitor mais velho e
tomado desde a juventude pelo vício da leitura. (Não me lembro de um dia
sequer, nos últimos 50 anos, em que eu não tivesse nas mãos um livro.) Não
estou sugerindo que o leitor de hoje seja tomado pela loucura de Quixote.
Antes, que ele tenha o privilégio de ter feito da Literatura uma companheira da
vida inteira, livre das interpretações acadêmicas e análises morfológicas e
sintáticas das obras lidas e relidas.
Passemos
à segunda razão. Em idade mais avançada fica mais fácil apreender que a vida
não passa de uma ilusão. Aqui, mais uma vez, ficção e realidade se misturam e
se fundem, como na vida e na arte. A metáfora dos moinhos de vento torna-se
mais clara do que nunca. E Dulcinéia d`El Toboso, vista também como uma miragem.
Porém, o Cavaleiro Andante não tem
nada a perder, está disposto a correr todos os riscos. Esta é a terceira razão
para se ler D. Quixote na velhice: nada mais a perder. Outra maneira de dizer a
mesma coisa, no tom popularesco do romance cervantino e condizente com a
própria vida é O que vier agora é lucro. Sancho Pança, bem mais jovem, não pode
compreender esta inclinação de seu amo e a todo custo procura trazer Quixote
para uma zona de segurança, o que é recusado com veemência pelo nosso herói. (A
despeito disso, na vida é sempre bom ter um Sancho por perto.)
Agora Quixote já pode lidar com seus
fantasmas. Eis o quarto motivo para ler ou reler o livro na velhice. A esta
altura, nossos fantasmas tornaram-se companheiros de viagem, podem ser
encarados de frente e sem medo, penso até que nem são mais fantasmas. Eles
carregam todas as nossas fraquezas e fragilidades e imperfeições e vicissitudes,
com a diferença que agora podem ser reconhecidos como tal. Nossos fantasmas são
a nossa infância. Por isso D. Quixote parece uma criança.
Em quinto lugar, há a oportunidade
de se aprender a não temer a morte. Melhor a honra preservada, ensina Quixote.
Mas que isso não seja fruto da loucura quixotesca, e sim da capacidade de
pensar nossa humana finitude. “Viver é muito perigoso”, não cansa de repetir
Guimarães Rosa em Grande Sertão. (Não conheço comparação sistemática entre D.
Quixote e Grande Sertão; decerto haverá semelhanças, é bem possível. Fica para
Eliana Cardoso, especialista em Literatura Comparada.)
Em sexto lugar, ler dois volumes com
700 páginas cada um, em qualquer idade torna-se um ótimo antídoto contra o
imediatismo, a velocidade irrefreável, a instantaneidade do mundo virtual que
nos cerca e nos sufoca e nos domina na atualidade. Capítulo após capítulo, a
narrativa lenta, às vezes monótona – a andadura cansada de Rocinante –, às
vezes agitada, como na vida, nos ensina a ter paciência. Quem sabe ler, pensa;
quem pensa, compreende; quem compreende, aprende. Como na escola da vida.
Por último, e não menos relevante,
há o imenso prazer da leitura de Cervantes, simples, clara, quase ingênua, uma
permanente conversa bem humorada com o leitor, que se estiver perto dos 70,
mergulha na história e delira e alucina e ri e chora com nosso herói.
Por inumeráveis razões, D. Quixote de La Mancha espera pela visita do leitor de qualquer idade.
Por inumeráveis razões, D. Quixote de La Mancha espera pela visita do leitor de qualquer idade.