segunda-feira, 21 de março de 2016

Mustang


A liberdade é um bem a ser preservado a qualquer custo.
Esta frase singela resume a história contada pelo filme Mustang, que recebeu o sofrível título de Cinco graças no Brasil. Trata-se de uma coprodução entre Turquia, França, Catar e Alemanha, indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro, pela França. Perdeu para outra obra prima, O filho de Saul.
            Cinco lindas meninas viviam tranquilamente numa cidade da Turquia, onde o filme foi ambientado, e de repente tudo muda na vida delas. Ilayda Akdogan, que interpreta Sonay; Tugba Sunguroglu, a Selma; Elit Iscan, que interpreta Ece; Doga Zeynep Doguslu, que vive Nur; e a excelente Günes Sensoy, a caçula e mais independente das irmãs, Lale, todas têm um desempenho espetacular, sob a direção de Deniz Gamze Ergüven.
            O que mudou na vida delas foi uma brincadeira inocente com meninos, colegas de escola, na praia, deturpada pela comunidade moralista e hipócrita onde vivem. A partir daí, a liberdade delas começa a ser comprometida, até chegar ao ponto da casa da avó, onde moram, tornar-se uma prisão, com grades em todas as janelas.
            O objetivo da avó e do tio das meninas é casá-las o mais breve possível, antes que percam a virgindade. Segundo a caçula e narradora da história, Lale, a casa torna-se uma “escola de preparação de esposas”, onde se ensina a cozinhar, costurar, e ser obediente, é claro.
            Nada disso impede nelas a descoberta da sexualidade. Enquanto que, os adultos, têm um comportamento que beira a insanidade.
            A partir da irmã mais velha, cada uma vai cumprindo seu destino, desde uma relativa felicidade até uma verdadeira tragédia. A caçula não desiste, ignora a loucura dos adultos e busca a liberdade a todo custo.
Em meu ponto de vista – afirmo isso porque as cenas são discretas, apenas insinuando os fatos – em pelo menos dois momentos Lale, a narradora, observa o tio entrando no quarto das irmãs, deixando a impressão de que ele abusava sexualmente de uma das meninas, mas não a ponto de tirar a virgindade dela. O tema é tratado em mais de um momento do filme, deixando claro que os homens de lá sabem como fazê-lo, sem tirar das meninas a garantia de um bom casamento. É o cúmulo da hipocrisia, de pessoas – ou culturas – moralistas, fundamentalistas. 
            Por fim, intrigou-me bastante o título original do filme. Já em casa, fui descobrir que este é o nome (mustangue, em português) de uma raça de cavalos norte-americanos, descendentes de animais espanhóis, aparentemente indomáveis, que não se sujeitam ao confinamento, enfim, à perda da liberdade. Bela escolha para um belíssimo filme!

Inutilidades úteis

           Depois de ver duas crônicas elogiosíssimas publicadas nos cadernos ditos de Cultura de dois importantes jornais resolvi acrescentar algum comentário sobre o livro do italiano Nuccio Ordine (Zahar, 2016, tradução de Luiz Carlos Bombassaro).
O título é sem dúvida provocador e quase fala por si próprio: A utilidade do inútil – um manifesto.
O livro é dividido em três partes, precedidas por uma introdução, além de conter um Apêndice. Tem início com uma longa, erudita e cansativa Introdução repleta de citações, para justificar “o oximoro evocado pelo título”, segundo o próprio Ordine.
Na primeira parte, intitulada A útil inutilidade da Literatura, o autor enumera as aparições do tema em textos de escritores, pensadores, filósofos famosos: Vicenzo Padula, Foster Wallace, Gabriel Garcia Marquez, Dante, Petrarca, Thomas More, Jim Hawkins, Shakespeare (este não podia faltar), Aristóteles, Platão, Kant, Ovídio, Montaigne, Giacomo Leopardi, Théophile Gautier, Baudelaire, John Locke, Boccaccio, Lorca, Cervantes, Dickens, Heidegger, Zhuangzi (século IV a.C.), Kakuzo Okakura, Ionesco, Calvino, Cioran, nesta ordem. Acho pouco provável que os críticos tenham atravessado esta floresta de citações, entediante ao extremo, todos batendo na mesma tecla, repetindo repetindo repetindo o que diz com propriedade Ítalo Calvino:

“Muitas vezes o compromisso que os homens assumem com atividades que parecem absolutamente gratuitas, sem outro fim que a diversão ou a satisfação de resolver um problema difícil, revela-se essencial num âmbito que ninguém havia imaginado, e tem consequências imprevisíveis. Isso é verdadeiro tanto para a poesia e a arte quanto para a ciência e a tecnologia.”

            O Louco assina em baixo. A própria existência deste blog que muito pouca gente lê é um belo exemplo de inutilidade, cuja utilidade serve apenas para entreter e preservar o que resta de sanidade mental do blogueiro.
            Sugiro portanto que um possível leitor passe direto para a segunda parte do livro: A universidade-empresa e os estudantes-clientes. Vejamos um trecho interessante, onde só agora o autor mostra mais claramente suas próprias ideias:

“Ao longo da última década, na maioria dos países europeus, com raras exceções como a Alemanha, as reformas e os contínuos cortes de recursos financeiros têm desfigurado – especialmente na Itália – a escola e a universidade. De modo progressivo e muito preocupante, o Estado começou a se desonerar de encargos econômicos na área da educação e da pesquisa básica. Esse processo tem determinado, paralelamente, também a “escolarização” das universidades. Trata-se de uma revolução copernicana que nos próximos anos mudará radicalmente o papel dos professores e a qualidade do ensino.”

            Não há novidade no que escreve Ordine, mas é importante que isso seja dito e repetido, uma tentativa (vã?) de mudar o rumo da Educação. E o autor esclarece o que chama de estudante-cliente:

“Pagando muito caro sua matrícula em Harvard, o estudante não espera somente que seu professor seja bem formado, competente e idôneo: espera que ele seja submisso, pois o cliente é um rei.”

            Neste ponto é preciso elogiar o livro de Ordine. Penso que este fenômeno já chegou às nossas universidades, incluindo as públicas, tornando cada vez mais difícil, espinhosa, sofrida, a relação aluno-professor (especialmente para o professor).
            E prossegue o autor: “Em suma, as instituições de ensino foram transformadas em empresas. ... Também os professores transformaram-se cada vez mais em simples burocratas a serviço da gestão comercial das empresas universitárias.”
            Isso vale para muitos de nossos hospitais universitários, transformados em empresas absolutamente desinteressadas no ensino, porém capazes de desonerar os Ministérios da Saúde e da Educação.
            Depois de três capítulos interessantes, inesperadamente Ordine retoma as citações literário-filosóficas: Victor Hugo, Tocqueville, Aleksandr Herzen, Bataille, John Henry Newman, Locke, Gramsci, ainda de forma maçante e cansativa. Os temas se sucedem, importantes e óbvios, repletos de citações: “O encontro com um clássico pode mudar sua vida”, “As bibliotecas ameaçadas”, “O desaparecimento das livrarias históricas”, “A utilidade imprevisível das ciências inúteis”, Euclides, Arquimedes, Poincaré, etc. De repente surge uma frase surpreendente, uma pérola, encontrada numa biblioteca de manuscritos, num oásis perdido no Saara:

“O conhecimento é uma riqueza que se pode transmitir sem se empobrecer.”

            Na terceira parte, Possuir mata: dignitas hominis, amor, verdade, Ordine retoma “a voz dos clássicos”: Demócrito, Saint-Exupéry, Cervantes, etc etc etc, o mais do mesmo.
            O apêndice não é do autor; é de Abrahan Flexner, intitulado A utilidade do conhecimento inútil. O ensaio é interessante, porém, repito, bate na mesma tecla, repleto de citações e exemplos de inutilidades que se tornaram úteis. E não é do autor.

            Em resumo, para o Louco o livro de Ordine toca em temas importantes, mas não estou certo de que mereça tamanha atenção de críticos e da mídia, particularmente pela falta de originalidade e escassa manifestação de ideias do próprio autor.

Daubigny

Meus quadros favoritos



Charles Francois Daubigny (1818-1878): pintor realista, precursor do impressionismo.